Por. Mauro Santayana do JB
OS EUA ESTÃO DE OLHO NA TRÍPLICE FRONTEIRA
Conforme o Wikileaks revelou, a embaixada norte-americana
informava, em 2009, que a direita preparava um “golpe democrático” contra Lugo.
A moderação dos Estados Unidos, que dizem estranhar a
rapidez do processo de impeachment do presidente Lugo, não deve alimentar o
otimismo continental. Em plena campanha eleitoral, a equipe de Obama (mesmo a
senhora Clinton) caminha com cautela, e não lhe convém tomar atitudes drásticas
nestas semanas. Esta razão os leva a deixar o assunto, neste momento, nas mãos
da OEA. Na verdade, se as autoridades de Washington não ordenaram a operação
relâmpago contra Lugo, não há dúvida de que o Parlamento paraguaio vem sendo, e
há muito, movido pelo controle remoto do Norte.
E é quase certo que, ao agir como agiram, os inimigos de
Lugo contavam com o aval norte-americano. E ainda contam. Conforme o Wikileaks
revelou, a embaixada norte-americana informava a Washington, em março de 2009,
que a direita preparava um “golpe democrático” contra Lugo, mediante o
Parlamento. Infelizmente, não sabemos o que a embaixada dos Estados Unidos em
Assunção comunicou ao seu governo depois e durante toda a maturação do golpe:
Assange e Meaning estão fora de ação.
Não é segredo que os falcões ianques sonham com o controle
da Tríplice Fronteira. Não há, no sul do Hemisfério, ponto mais estratégico do
que o que une o Brasil ao Paraguai e à Argentina. É o ponto central da região
mais populosa e mais industrializada da América do Sul, a pouco mais de duas
horas de voo de Buenos Aires, de São Paulo e de Brasília. Isso sem falar nas
cataratas do Iguaçu, no Aquífero Guarani e na Usina de Itaipu. Por isso mesmo,
qualquer coisa que ocorra em Assunção e em Buenos Aires nos
interessa, e de muito perto.
Não procede a afirmação de Julio Sanguinetti, o
ex-presidente uruguaio, de que estamos intervindo em assuntos internos do
Paraguai. É provável que o ex-presidente — que teve um desempenho neoliberal
durante seu mandato — esteja, além de ao Brasil e à Argentina, dirigindo suas críticas
também a José Mujica, lutador contra a ditadura militar, que o manteve durante
14 anos prisioneiro, e que vem exercendo um governo exemplar de esquerda no
Uruguai.
Não houve intervenção nos assuntos internos do Paraguai, mas
a reação normal de dois organismos internacionais que se regem por tratados de
defesa do estado de direito no continente, o Mercosul e a Unasul — isso sem se
falar na OEA, cujo presidente condenou, ad referendum da assembleia, o golpe
parlamentar de Assunção.
É da norma das relações internacionais a manifestação de
desagrado contra decisões de outros países, mediante medidas diplomáticas.
Essas medidas podem evoluir, conforme a situação, até a ruptura de relações,
sem que haja intervenção nos assuntos internos, nem violação aos princípios da
autodeterminação dos povos.
A prudência — mesmo quando os atos internos não ameacem os
países vizinhos — manda não reconhecer, de afogadilho, um governo que surge
ex-abrupto, em manobra parlamentar de poucas horas. E se trata de sadia providência
expressar, de imediato, o desconforto pelo processo de deposição, sem que tenha
havido investigação minuciosa dos fatos alegados, e amplo direito de defesa do
presidente.
Registre-se o açodamento nada cristão do núncio apostólico
em hipotecar solidariedade ao sucessor de Lugo, a ponto de celebrar missa de
regozijo no dia de sua posse. O Vaticano, ao ser o primeiro a reconhecer o novo
governo, não agiu como Estado, mas, sim, como sede de uma seita religiosa como
outra qualquer.
O bispo é um pecador, é verdade, mas menos pecador do que
muitos outros prelados da Igreja. Ele, ao gerar filhos, agiu como um homem
comum. Outros foram muito mais adiante nos pecados da carne — sem falar em
outros deslizes, da mesma gravidade — e têm sido “compreendidos” e protegidos
pela alta hierarquia da Igreja. O maior pecado de Lugo é o de defender os
pobres, de retornar aos postulados da Teologia da Libertação.
Lugo parece decidido a recuperar o seu mandato — que
duraria, constitucionalmente, até agosto do próximo ano. Não parece que isso
seja fácil, embora não seja improvável. Na realidade, Lugo não conta com a
maior parcela da classe média paraguaia, e possivelmente enfrente a hostilidade
das forças militares. Os chamados poderes de fato — a começar pela Igreja
Católica, que tem um estatuto de privilégios no Paraguai — não assimilaram o
bispo e as suas ideias. Em política, no entanto, não convém subestimar os
imprevistos.
Os fazendeiros brasileiros que se aproveitaram dos preços
relativamente baixos das terras paraguaias, e lá se fixaram, não podem colocar
os seus interesses econômicos acima dos interesses permanentes da nação. É
natural que aspirem a boas relações entre os dois países e que, até mesmo,
peçam a Dilma que reconheça o governo. Mas o governo brasileiro não parece
disposto a curvar-se diante dessa demanda corporativa dos “brasiguaios”.
No Paraguai se repete uma endemia política continental, sob
o regime presidencialista. O povo vota em quem se dispõe a lutar contra as
desigualdades e em assegurar a todos a educação, a saúde e a segurança,
mediante a força do Estado. Os parlamentos são eleitos por feudos eleitorais
dominados por oligarcas, que pretendem, isso sim, manter seus privilégios de
fortuna, de classe, de relações familiares.
Nós sofremos isso com a rebelião parlamentar, empresarial e
militar (com apoio estrangeiro) contra Getulio, em 1954, que o levou ao
suicídio; contra Juscelino, mesmo antes de sua posse, e, em duas ocasiões,
durante seu mandato. Todas foram debeladas. A conspiração se repetiu com Jânio,
e com Jango — deposto pela aliança golpista civil e militar, patrocinada por
Washington, em 1964.
A decisão dos países do Mercosul de suspender o Paraguai de
sua filiação ao tratado, e a da Unasul de só reconhecer o governo paraguaio que
nasça das novas eleições marcadas para abril, não ferem a soberania do
Paraguai, mas expressam um direito de evitar que as duas alianças continentais
sejam cúmplices de um golpe contra o estado democrático de direito no país
vizinho.
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