O Cruzeiro do Sul quebrou. Quem paga?
A partir de 1987, ao menos 60 instituições foram submetidas ao Regime de Administração Especial Temporária (RAET). O caso do Banco Cruzeiro do Sul reveste-se de peculiaridades que devemos observar com acuidade por envolver o Fundo Garantidor de Crédito. É inegável a importância dos bancos na vida moderna. Todavia, tal constatação é insuficiente para que a sociedade aceite que esta atividade siga privatizando resultados positivos e socializando prejuízos.
Por Idalvo Toscano.
O Banco Central do Brasil decretou, em 04.06.2012, o banco Cruzeiro do Sul em Regime de Administração Especial Temporária (Raet). Este é um dos três mecanismos de intervenção no Sistema Financeiro Nacional à disposição da autoridade monetária e tem como pressuposto o afastamento dos controladores da instituição; os demais são as Intervenções e as Liquidações Extrajudiciais.
Foi identificado um rombo de cerca de R$ 1,3 bilhão em fraudes semelhantes àquelas ocorridas no Banco Panamericano e um patrimônio líquido à descoberto da ordem de R$150 milhões, segundo noticiado.
A partir de 1987, quando criado pelo Decreto 2321/87, ao menos 60 instituições foram submetidas ao RAET. Todavia, o caso do Banco Cruzeiro do Sul reveste-se de peculiaridades que devemos observar com acuidade por envolver o Fundo Garantidor de Crédito (FGC) constituído para garantir os recursos de clientes em até R$ 70 mil.
As disponibilidades do Fundo são constituídas com a contribuição compulsória de 0,0125% sobre os saldos das contas garantidas pelo FGC, constituindo-se uma espécie de seguro aos correntistas das instituições bancárias – públicas e privadas; totalizam atualmente cerca de R$ 30,5 bilhões. Entretanto, os propósitos iniciais do FGC sofreram mutações nos últimos anos: se inicialmente se prestavam à garantia dos correntistas, hoje socorrem diretamente as próprias instituições em dificuldades ou mesmo quebradas (maiores informações no site:http://www.fgc.org.br/upload/120377.pdf).
Por ocasião da quebra do banco Panamericano em 2010, por fraudes que totalizaram R$ 3,8 bilhões, a regulamentação do FGC foi alterada. Assim, em uma operação amplamente divulgada pela imprensa, adotou-se uma inusitada “engenharia financeira” que permitiu ao principal acionista, Silvio Santos, livrar-se de qualquer prejuízo com a quebra do banco, e transferir seu controle acionário a outra instituição, o BTG-Pactual; outros bancos – Martone e Schahin – tiveram, igualmente, suas vendas diretamente financiadas pelo FGC.
Se a recorrência de fraudes e quebras bancárias é fruto de uma fiscalização inadequada ou mesmo leniente, não é o objeto deste artigo. Tampouco, dispomos de elementos para realizar esta avaliação. Contudo, é lícito afirmar que se faz necessária uma revisão profunda no modus operandi da regulação prudencial do órgão fiscalizador.
Com o Cruzeiro do Sul em RAET, o FGC passa a administrá-lo pelo período de 180 dias, findo os quais, já devidamente saneado, será colocado à venda. Até lá, o FGC é o dono de fato do banco, cabendo-lhe aportar expressivos recursos em sua recuperação.
O FGC é constituído como uma “associação civil sem fins lucrativos, com personalidade jurídica de direito privado, através da Resolução 2.211, de 16.11.1995”. Todavia, apenas do ponto de vista formal e jurídico pode-se dizer que sua constituição seja privada, já que, nos episódios recentes, tem atuado como “prestamista em última instância”, como se fosse uma extensão da autoridade monetária.
Por outro lado, quando se analisa detidamente sua composição quase a metade de suas disponibilidades tem origem em contribuições aportadas por bancos públicos (mar/2012). Apartada a parcela dos acionistas privados do Banco do Brasil, temos o equivalente a 35% dos recursos do Fundo vindo exclusivamente dos bancos públicos.
Ora, como se sabe, bancos públicos não quebram e, portanto, a garantia oferecida pelo FGC jamais será utilizada pelos correntistas dos mesmos. Trata-se, evidentemente, de uma situação em que recursos de natureza pública se destinam a socorrer bancos privados em dificuldades, mesmo que estas sejam fruto de operações fraudulentas.
Importa destacar, ademais, que tais contribuições ao Fundo não atingem somente os correntistas, mas toda a sociedade, pois os bancos públicos têm recursos orçamentários de Estados e União constituindo seu capital social.
Entretanto, o problema é mais sério. Vejamos.
Quando o FGC foi criado, tinha-se como pressuposto que as contribuições compulsórias das instituições resultariam de deduções do resultado operacional dos bancos, já que funcionariam como uma garantia do sistema bancário aos seus correntistas. Os bancos, contudo, não são – digamos – exemplos de instituições altruístas, mesmo que em seu próprio benefício. É de conhecimento até do reino mineral, como diria Mino Carta, que de alguma forma tais valores foram e continuam a ser repassados aos usuários de seus serviços, quer via tarifas, taxas de juros ou outras formas de cobrança dos correntistas e, por serem individualmente diminutos, tornaram-se imperceptíveis. Esta é uma tese tão verossímil que até Miriam Leitão a abraça!
Teríamos, assim, a composição do FGC originando-se, em sua totalidade, em “recursos do público”, o que é diferente de “recursos públicos”, estes o resultado do recolhimento de impostos e tributos pagos pelos contribuintes, direta ou indiretamente.
Por estas razões, o fundo representa, a exemplo de outras tantas, uma forma especial de propriedade que não se confunde com a forma privada ou pública, mas resulta da existência da vida em sociedade e, neste sentido, trata-se de uma “propriedade social”, de mesma natureza como o são os bens culturais e coletivos. Como corolário, requerem uma nova forma de gestão.
É inegável a importância dos bancos na vida moderna. Todavia, tal constatação é insuficiente para que a sociedade aceite que esta atividade econômica permaneça privatizando resultados positivos e socializando prejuízos vultosos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário