“Mino Carta é um chato, se pudesse reescreveria os
Evangelhos. Inimigo do regime, Geisel o detestava, mas não tinha rabo preso.”
De um depoimento de João Baptista Figueiredo, gravado em 1988 durante um
churrasco amigo e divulgado após a morte do último ditador da casta fardada.
É do conhecimento até do mundo mineral que nunca escrevi uma
única, escassa linha para louvar os torturadores da ditadura, estivessem eles a
serviço da Operação Bandeirantes ou do DOI-Codi. Ou no Rio, na Barão de
Mesquita. E nunca suspeitei que a esta altura da minha longa carreira
jornalística me colheria a traçar as linhas acima. Meu desempenho é conhecido,
meus comportamentos também. Mesmo assim, há quem se abale a inventar histórias
a meu respeito. Alguém que, obviamente, fica abaixo do mundo mineral.
Não me faltaram detratores vida adentro, ninguém, contudo,
conseguiu provar coisa alguma que me desabonasse. Os atuais superam-se. Um
deles se diz jornalista, outro acadêmico. Pannunzio & Magnoli, binômio
perfeito para uma dupla do picadeiro, na hipótese mais generosa de uma farsa
cinematográfica. Esmeram-se para demonstrar exatamente o que soletro há tempo:
a mídia nativa prima tanto por sua mediocridade técnica quanto por sua
invejável capacidade de inventar, omitir e mentir.
Afirmam que no meu tempo de diretor de redação de Veja
defendi a pena de morte contra “terrorristas”, além de enaltecer o excelente
trabalho da Oban. Outro inquisidor se associa, colunista e blogueiro, de
sobrenome Azevedo. E me aponta, além do já dito, como um singular profissional
que não aceita interferência do patrão. Incrível: arrogo-me mandar mais do que
o próprio. Normal que ele me escale para o seu auto de fé. O Brasil é o único
país do meu conhecimento onde os profissionais chamam de colega o dono da casa.
Não há nas calúnias que me alvejam o mais pálido resquício
de verdade factual. Os textos que me atribuem para baseá-las nascem de uma
mistificação. Pinçados ao acaso e fora do contexto, um somente é de minha
autoria e nada diz que me incrimine. E pouparei os leitores de disquisições
sobre minha repulsa visceral, antes ainda que moral, à prisão sem mandado, à
tortura e à pena de morte.
Quando o Estadão foi pioneiro na publicação de um
artigo assinado Magnoli, limitei-me a escrever um breve texto para o site de
CartaCapital, destinado a contar a história de outra peça de humorismo, escrita
em 1970 por um certo Lenildo Tabosa Pessoa, redator, vejam só, do Estadão, e
intitulada O Senhor Demetrio. Ou seja, eu mesmo, marcado no batismo por nome
tão pesado.
A bem de minha honra, Geisel me detestava. Foto: AE
Lenildo pretendia publicar seu texto no jornal, os patrões,
Julio de Mesquita Neto e Ruy Mesquita, não deixaram. Surgiu em matéria paga o
retrato de um hipócrita pretensamente refinado que, como Arlequim da política,
servia ao mesmo tempo Máfia e Kremlin. O senhor Demetrio, de codinome Mino.
Diga-se que Lenildo encontraria eco três anos depois no programa global de um
facínora chamado Amaral Neto, também identificado como Amoral Nato, que repetia
Lenildo no vídeo. Como se vê, tom e letra das calúnias estão sujeitos a
mudanças ideológicas.
Ao negarem espaço nas páginas da sua responsabilidade à
diatribe de Lenildo, os herdeiros do doutor Julinho quiseram respeitar a
memória do meu pai, que trabalhou no Estadão por 16 anos, e meu honesto e leal
desempenho na criação da Edição de Esporte e do Jornal da Tarde. O Estadão,
evidentemente, não é mais o mesmo. Lenildo e Amaral Neto me tinham como
perigoso subversivo de esquerda. Em compensação, hoje sou acusado de ter
dirigido naquele mesmo 1970 uma Veja entregue “à bajulação, subserviência e
propaganda da ditadura”. É espantoso, mas a semanal da Abril em 1970 era
submetida à censura exercida na redação por militares. Eu gostaria de saber o
que acham os senhores Pannunzio, Magnoli e Azevedo a respeito de quem na mídia
brasileira se perfilava illo tempore ao lado da ditadura. Ou seja, quase todos.
E Arci, impávido, ofereceu a cabeça de Millôr Fernandes ao
ministro Golbery. Fotos: Marcelo Carnaval e Manoel Amorim/Ag O Globo
Quem, de fato foi censurado? Os alternativos, então chamados
nanicos, em peso, do Pasquim a Opinião, que depois se tornaria Movimento, sem
exclusão de O São Paulo, o jornal da Cúria paulistana regida por dom Paulo
Evaristo Arns. A Veja, primeiro por militares, depois por policiais civis no
período Médici. Com Geisel, passou a ser censurada diariamente, de terça a
sexta, nas dependências da Polícia Federal em São Paulo , e aos
sábados, à época dia de fechamento, na própria residência de censores investidos
do direito a um fim de semana aprazível. Enquanto isso, Geisel exigia que os
alternativos submetessem seu material às tesouras censórias em Brasília, toda
terça-feira.
Sim, o Estadão também foi censurado e com ele o Jornal da
Tarde. A punição resultava de uma briga em família. O jornal
apoiara o golpe, mas sonhava com a devolução do poder a um civil, desde que se
chamasse Carlos Lacerda. Este não deixava por menos nas suas aventuras
oníricas. O Estadão acabou sob censura, retirada contudo em janeiro de 1975, no
quadro das celebrações do centenário do jornal. Carlos Lacerda foi cassado.
Diga-se que ao Estadão permitia-se preencher os espaços vagos deixados pelos
cortes com versos de Camões, em geral bem escolhidos, e ao Jornal da Tarde com
receitas de bolo, às vezes discutíveis. O resto da mídia não sofreu censura.
Não era preciso.
Julio Neto e Ruy Mesquita não dariam espaço às calúnias de
um tal de Magnoli. Fotos: Alfredo Fiaschi/AE e AE
Quando me chamam para fazer palestras em cursos de jornalismo,
sempre me surpreendo ao verificar que o enredo que acabo de alinhavar é
ignorado pelos alunos e por muitos professores. Acham que a censura foi ampla,
geral e irrestrita. Meus críticos botões observam que me surpreendo à toa. Pois
não se trata de futuros Pannunzios, Magnolis e Azevedos? No caso deste senhor
Reinaldo, vale acentuar uma nossa específica diferença. Não me refiro ao fato
de que eu reputo Antonio Gramsci um grande pensador, enquanto ele o define como
terrorista. A questão é outra.
Ocorre que, ao trabalhar e ao fazer estágios na Europa,
entendi de vez que patrão é patrão e empregado é empregado, e que para dirigir
redações o profissional é chamado por causa de sua exclusiva competência. Ao
contrário do que se dá no Brasil, por lá não há diretores por direito divino.
Por isso, ao deixar o Jornal da Tarde para tomar o comando dos preparativos do
lançamento de Veja, me senti em condições de exigir certas garantias.
No Estadão tivera um excelente relacionamento com a família
Mesquita, fortalecido pela lembrança que cultivavam de meu pai, iniciador da
reforma do jornal que Claudio Abramo aprofundou e completou. Gozei na casa
então ainda do doutor Julinho, filho do fundador, de grande autonomia, aquela
que facilitou a criação de um diário de estilo muito próprio, arrojado na
diagramação, em busca de qualidade literária no texto. Estava claro, porém, que
a linha política seria a da família. Com os Mesquita me dei muito bem, foram de
longe meus melhores patrões, talvez os remanescentes não percebam que por eles
tenho afeto, embora, saído do Estadão, não me preocupasse em mostrar que minhas
ideias não coincidiam com as deles.
E Golbery, gélido, disse: "Eu não pedi a cabeça de
ninguém, senhor Civita". Foto: AE
Convidado finalmente pelos Civita para a empreitada de Veja,
solicitei uma liberdade de ação diversa daquela de que gozara no Jornal da
Tarde. Só aceitaria o convite se os donos da Abril, uma vez definida a fórmula
da publicação, se portassem como leitores a cada edição, passível de discussão
está claro, mas a posteriori, quer dizer, quando já nas bancas.
Pedido aceito.
A primeira Veja, espécie de newsmagazine à
brasileira, foi um fracasso. Além disso, já irritou os fardados por trazer na
capa a foice e o martelo. A temperatura subiu com a segunda capa, a favor da
Igreja politicamente engajada. A quinta, com a cobertura do congresso da UNE em
Ibiúna, foi apreendida nas bancas. E também o foi aquela que celebrou a
decretação do AI-5 no dia 13 de dezembro de 1968. Tempos difíceis. Mas a edição
de mais nítido desafio aos algozes da ditadura é de mais ou menos um ano
depois. A chamada de capa era simples e direta: “Torturas”, em letras de forma.
A história desta reportagem começou cerca de três meses
antes, com uma investigação capilar conduzida por uma equipe de oito repórteres
encabeçada por Raymundo Rodrigues Pereira. Foram levantados 150 casos, três
deles nos detalhes mínimos. Emílio Garrastazu Médici acabava de ser escolhido
para substituir a Junta Militar e pela pena do então coronel Octavio Costa
acenava em discurso, pretensamente poético ao declinar a origem do novo ditador
por dizê-lo vindo do Minuano, à necessidade do abrandamento da repressão.
Raymundo e eu recorremos a um estratagema, e saímos com uma edição anódina para
celebrar o vento gaúcho. Falávamos da posse, da composição do ministério, do
discurso. Chamada de capa: “O Presidente Não Admite Torturas”.
Ofereço este número de Veja à aguda análise de Pannunzios,
Magnolis, Azevedos e quejandos. (Nada a ver com queijo.) Bajulação e
subserviência estão ali expostas da forma mais redonda. Naquele momento, a
mídia foi atrás de Veja, e por três dias falou-se mais ou menos abertamente de
tortura. Logo veio a proibição, que Veja ignorou. Na noite de sexta-feira a
reportagem da equipe de Raymundo descia à gráfica para arrolar 150 irrefutáveis
casos de tortura, dos quais três em detalhes. Ao mesmo tempo, eu mandava cortar os
telefones da Abril para impedir ligações de quem pretendesse interferir,
autoridades, patrões e intermediários. A edição foi apreendida nas bancas, e
logo desembarcou na redação a censura dos militares.
Este sim, "nosso Trotski", a Arci pediu minha
cabeça e conseguiu. Foto: AE
Quando ouvi falar em distensão pela primeira vez, meados de
1972, pela boca do general Golbery, à época presidente da Dow Chemical no
Brasil, pareceu-me possível alguma mudança na sucessão de Médici. De fato,
Golbery, que vinha de conhecer, articulava na sombra a candidatura de Ernesto
Geisel, títere sob medida para as suas artes de titereiro. Meados de 1973,
assenta-se a candidatura obrigatória de Geisel. Alguns meses após, ministério
em gestação, Golbery, futuro chefe da Casa Civil à revelia de Médici, me sugere
uma conversa com o recém-convocado para a pasta da Justiça, Armando Falcão.
Assunto: fim da censura em clima de distensão.
Conversei duas vezes com Falcão enquanto Roberto Civita
entre janeiro e fevereiro de 1974 apontava em Hugh Hefner um notável
filósofo da modernidade. Mal assumiu a pasta, dia 19 de março de 1974, Falcão
chamou-me a Brasília para comunicar que a censura se ia naquele instante.
Sublinhei: “Sem compromisso algum de nossa parte”. “Claro, claro”, proclamou, e
me deu de presente seu livro de recente publicação, intitulado A Revolução
Permanente. Mais tarde Golbery comentaria: “Falcão é o nosso Trotski”.
Três semanas após, a censura voltou, mais feroz do que
antes. Duas reportagens causaram a costumeira irritação, fatal foi uma charge
de Millôr Fernandes. Em revide, decretava-se que a censura seria executada em
Brasília às terças-feiras. Fui visitar Golbery no dia seguinte, eu estava de
veneta rebelde, levei meus dois filhos meninotes, e andei pela capital federal
de limusine. No meu livro de próxima publicação, O Brasil, a sair pela Editora
Record como O Castelo de Âmbar, descrevo assim a visita ao chefe da Casa Civil.
“A secretária do ministro, dona Lurdinha, senhora de modos
caseiros, redonda rola sobre o carpete sem perder o sorriso, chega-se ao meu
ouvido, murmura: “Veio também o senhor Roberto Civita, quer ser recebido mas
não tem hora marcada”. Não deixo que o tempo se estique inutilmente, tomo a
visão panorâmica da antessala e vejo Arci, entalado em uma poltrona com
expressão perdida na paisagem da savana descortinada além das vidraças. “Que
faz aqui?” E ouço meu próprio latido.
“Vici me contou que você viria, e eu gostaria…”
“Você não pediu audiência, não tem hora”, proclamo.
Ele insiste, à beira da imploração. O meu tom chama a
atenção de Manuela e Gianni, encaram a cena sem entender o assunto, percebem
porém que o pai está muito irritado, enquanto o outro tem jeito de pedinte.
Lurdinha traz uma laranjada para as crianças e avisa que o general está à
espera. Admito: “Você entra comigo, mas se compromete a não abrir a boca”. Ele
promete.
Na conversa que se segue no gabinete da Casa Civil, o meu
argumento é óbvio, Veja é uma revista semanal que encerra o trabalho na noite
de sábado e vai às bancas às segundas-feiras, obrigá-la a submeter textos e
fotos aos censores na terça significa inviabilizá-la. Pergunto a Golbery: “Os
senhores pretendem que Veja simplesmente acabe?” Não, nada disso. “Então é
preciso pôr em prática outro sistema.”
O chefe da Casa Civil entende e concorda. Diz: “Vá até o
Ministério da Justiça, fale com Falcão, a Lurdinha já vai avisá-lo, diga a ele
que vamos procurar uma saída até amanhã no máximo, a próxima edição tem de sair
regularmente”.
Golbery fica de pé, hora da despedida. O general não
conhecia o patrãozinho que até aquele momento cumpriu a promessa feita na
antessala. E de supetão abre a boca: “General, se o senhor acha que devemos
tomar alguma providência em relação ao Millôr Fernandes…”
Golbery fulminou-o: “Senhor Civita, não pedi a cabeça de
ninguém”.
Poucos entenderam que o Minuano poderia despertar ciclones.
Foto: Reprodução
Vici e Arci, ou seja, Victor Civita e Roberto Civita, assim
se chamavam no castelo envidraçado à beira do Tietê, esgoto paulistano ao ar
livre. Esse entrecho já o desenrolei em O Castelo de Âmbar sem merecer desmentido e o
próprio Millôr o colocou no ar do seu blog logo após a publicação no final de
2000. Ao sair do gabinete de Golbery, eu disse a Roberto Civita “você é mesmo
cretino”, como depois o definiria na conversa de despedida com o pai Victor,
mas poderia dizer coisa muito pior. Quanto à minha saída da direção de Veja e
de conselheiro board abriliano, descrevi o evento em editorial de poucas
semanas atrás. Faço questão de salientar, apenas e ainda, que não fui demitido,
e sim me demiti para não receber um único centavo das mãos de um Civita, nem
que fosse a comissão pelo empréstimo de 50 milhões de dólares recebidos pela
Abril da Caixa Econômica Federal, juntamente com o fim da censura, em troca da
minha cabeça. A revista prontamente caiu nos braços do regime.
A partir daí, tive de inventar meus empregos para viver. Ou
por outra, para viver com um salário infinitamente menor (insisto,
infinitamente) do que aquele dos importantes da imprensa, e nem se fale
daqueles da televisão. Ganham mais que os europeus e de muitos americanos. Em
outro país, um jornalista com o meu passado não sofreria as calúnias de
Pannunzios, Magnolis e Azevedos, e de vários que os precederam. Muito
representativos de uma mídia que manipula, inventa, omite e mente. Observem os
fatos e as mentiras da atualidade imediata, o caso criado pelo protagonismo de
Gilmar Mendes e pela ferocidade delirante dos chapa-branca da casa-grande. Além
do mais, há em tudo isso um traço profundo de infantilidade, um rasgo abissal,
a provar o estágio primitivo da sociedade do privilégio, certa de que a senzala
aplaude Dilma e Lula e mesmo assim se conforma, resignada, dentro dos seus
habituais limites.
Os caluniadores são, antes de mais nada, covardes. Sentem as
costas protegidas pela falta generalizada de memória, ou pela pronta inclinação
ao esquecimento. Pela impunidade tradicional garantida por uma Justiça que não
pune o rico e poderoso. Pelo respaldo do patrão comprometido com a manutenção
do atraso em um país onde somente 36% da população conta com saneamento básico,
e 50 mil pessoas morrem assassinadas ano após outro. Confiam no naufrágio da
verdade factual, pela enésima vez, e que tudo acabe em pizza, como outrora se
dizia, a começar pela CPI do Cachoeira e pela pantomima encenada por Gilmar
Mendes. E que o tempo, vertiginoso e fulminante como sempre, se feche sobre os
fatos, sobre mais uma grande vergonha, como o mar sobre um barco furado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário