As evidências indicam a necessidade de uma investigação
séria sobre o papel de setores da mídia no caso Cachoeira. Os indícios vão além
do jogo político e apontam para conluios com o crime comum. De narradora dos
acontecimentos a Veja tornou-se personagem, revelando um envolvimento nunca
visto de forma tão escancarada na cena política brasileira.
Por Laurindo Lalo Leal Filho, publicado originalmente na Revista do Brasil, edição
de junho de 2012.
O caso Demóstenes-Cachoeira seria apenas mais um escândalo
político a estampar manchetes. Mas no meio do caminho, entre corrompidos e
corruptores, tinha uma Veja. De narradora dos acontecimentos a revista semanal
da Abril tornou-se personagem, revelando um envolvimento nunca visto de forma
tão escancarada na cena política brasileira. Gravações feitas pela Polícia
Federal, com autorização da Justiça, não deixam dúvidas. O contraventor
Carlinhos Cachoeira era mais do que fonte de informações. Seu relacionamento
com o diretor da sucursal de Veja em Brasília, Policarpo Junior, permitia a ele
sugerir até a seção da revista em que determinadas notas de seu interesse
deveriam ser estampadas.
O pouco que se revelou até aqui permite concluir que a
publicação tornou-se instrumento de Cachoeira para remover do governo
obstáculos aos seus objetivos. Um desses entraves estaria no Departamento
Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), do Ministério dos
Transportes, e dificultava a atuação da Delta Construções, empresa que teria
fortes ligações com o contraventor.
Segundo o jornalista Luis Nassif, a matéria da Veja sobre o
Dnit saiu em 3 de junho de 2011. “A diretoria estava atrapalhando os negócios
da Delta. Foi o mesmo modo de operação do episódio dos Correios –que daria
origem ao chamado “mensalão”. Cachoeira dava os dados, Veja publicava e
desalojava os adversários de Cachoeira.” Com isso cumpria também os objetivos
de situar-se como vigilante de desmandos e fustigar os governos Lula e Dilma,
pelos quais nunca demonstrou simpatia alguma. Basta lembrar a capa de maio de
2006 com Lula levando um pé no traseiro, juntando numa só imagem grosseria e
desrespeito. Para não falar de outras, do ano anterior, instigando o
“impeachment” do presidente da República.
O sucesso dos dois governos Lula e os altos índices de
aprovação recebidos até agora pela presidenta Dilma Rousseff parecem ter
exacerbado o furor da revista. A proximidade do diretor da sucursal de Brasília
com Cachoeira, e deste com o senador Demóstenes Torres (ex-DEM-GO), sempre
elogiado por Veja, veio a calhar. Até surgirem as gravações da Polícia Federal
levando a revista a um recolhimento político só quebrado em defesas tíbias de
seu funcionário e do que ela chama de “liberdade de imprensa”.
Veja diz-se “enganada pela fonte”, argumento desmentido pelo
delegado federal Matheus Mella Rodrigues, coordenador da Operação Monte Carlo.
O policial mostrou que o jornalista Policarpo Junior sabia das relações de
Demóstenes com Cachoeira, mas nunca as denunciou, protegendo “meliantes”, como
resumiu com propriedade a revista CartaCapital.
Livre, pero no mucho.
Segundo Veja, a “liberdade de imprensa” estaria ameaçada se
o jornalista, ou seu patrão Roberto Civita, fosse chamado a depor na Comissão
Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) aberta no Congresso Nacional para
investigar o caso. Mas, na mesma edição em que supostamente põe o direito à
informação acima de tudo, clama por um controle planetário da internet,
agastada com a circulação de informações sobre seus descaminhos na rede.
A internet foi o principal meio de exposição dos detalhes da
suspeita relação Cachoeira-Demóstenes-Veja, e uma enxurrada de expressões nada
elogiosas levaram a revista ao topo dos assuntos mais mencionados no Twitter.
Os principais veículos de alcance nacional silenciaram ou apoiaram a relação –
exceção feita à Rede Record e à revista CartaCapital. Alguns, como O Globo, não
titubearam em tomar as dores da Editora Abril. Por um de seus colunistas,
Merval Pereira, o jornal isentou a revista de responsabilidades. Depois, em
editorial, reagiu à comparação feita por CartaCapital entre o dono da Editora
Abril e o magnata Rupert Murdoch, punido pela Justiça britânica pelo mau uso de
seus veículos de comunicação no Reino Unido. A Folha de S.Paulo, também em
editorial, aliou-se a Veja. Mas sua ombudsman, Suzana Singer, que tem a
incumbência de criticar o desempenho do jornal, pelo menos levantou uma dúvida
ao dizer que “não se sabe se algo comprometedor envolvendo a imprensa surgirá
desse lamaçal”. Para lembrar em seguida que ao PT interessa com o caso
Cachoeira empastelar o “mensalão” a ser julgado em breve, e conclui dizendo: “A
imprensa não pode cair na armadilha de permitir que um escândalo anule o outro.
Tem o dever de apurar tudo – mas sem se poupar. É hora de dar um exemplo de
transparência”. Mas a cobertura da Folha das relações Cachoeira-Demóstenes-Veja
limita-se a notas superficiais.
Intocável.
A ideia de que o caso Cachoeira seria uma forma de desviar
as atenções sobre a campanha pelo julgamento dos acusados no caso do “mensalão”
foi alardeada pela mídia. E utilizada pelo procurador-geral da República,
Roberto Gurgel, para se livrar da acusação de ter sido negligente. A PF
encaminhou a Gurgel a denúncia sobre as relações promíscuas entre Cachoeira e
Demóstenes em 2009. Se ele tivesse dado andamento à denúncia, o processo se
tornaria público e poderia ter comprometido no ano seguinte a eleição de
Demóstenes ao Senado, de Marconi Perillo (PSDB) ao governo de Goiás e de outros
políticos suspeitos de servir a Cachoeira.
Em vez de explicar por que segurou o processo, Gurgel
respondeu às acusações sob a alegação de que partiam dos envolvidos no processo
do “mensalão”, temerosos diante da iminência do julgamento no qual ele será o
acusador. A CPMI começou em maio e tem seis meses para concluir as apurações.
Ainda não havia mostrado, porém, o mesmo ânimo convocatório em relação aos
governadores envolvidos com a Delta Construções e muito menos ao jornalista de
Veja e seu patrão. Os governadores, por acordos político-partidários; o
jornalista e o empresário, não se sabe bem as razões, embora possam ser
formuladas hipóteses.
Uma delas é a de que o maior partido da base governista, o
PMDB, estaria sendo sensível ao lobby da mídia por uma blindagem. Com uma CPMI
em banho-maria, o partido não seria muito arranhado com a exposição de
políticos peemedebistas a investigações. E o PT, concorrente na disputa por
espaço no governo, não capitalizaria demais os resultados. A concentração em
poucos e poderosos grupos nacionais e transnacionais deu à mídia um poder nunca
antes alcançado, muitas vezes superior aos próprios poderes republicanos.
Assim, governos e outras instituições públicas tornam-se reféns dos meios de
comunicação e temem enfrentá-los.
Apenas em três ocasiões de nossa história veículos de
comunicação foram alvo de investigações por parte de CPIs. Em 1953, o dono do
Última Hora, Samuel Wainer, sugeriu ao presidente Getúlio Vargas que seu jornal
fosse investigado quanto às operações de crédito mantidas com o Banco do
Brasil, como lembra o professor Venício Lima, da Universidade de Brasília. Dez
anos depois, o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) foi acusado de
ter ligações com a CIA e receber recursos dos Estados Unidos para interferir
nas eleições brasileiras. O instituto chegou a alugar por três meses, num
período pré-eleitoral, o jornal A Noite do Rio, para colocá-lo a serviço da
oposição ao presidente João Goulart. E em 1966 foi aberta investigação do
acordo entre as Organizações Globo e o grupo de mídia estadunidense Time-Life.
Uma operação de US$ 6 milhões, em benefício da TV Globo, acabou com o império
dos Diários Associados de Assis Chateaubriand.
Testemunha de defesa.
Há uma outra inquirição de jornalista que não se enquadra
entre os casos mencionados, embora seja altamente significativa para os dias de
hoje. Trata-se da ida a uma Comissão Parlamentar de Inquérito, em 2005, do
mesmo Policarpo Junior. Na ocasião, o chefe de organização criminosa se dizia
vítima de chantagem por parte de um deputado carioca que estaria exigindo
propina para não colocar seu nome no relatório final de uma CPI instalada na
Assembleia Legislativa do Rio. Policarpo testemunhou em defesa do bicheiro e
nenhum jornal nem a ABI alegaram tratar-se de uma intimidação à imprensa.
Uma das explicações para essa baixa exposição de jornais e
jornalistas a investigações está no poder de interferência dos grupos
midiáticos na política eleitoral. Exemplo clássico é a frase da viúva do
proprietário das Organizações Globo referindo-se ao governo Collor: “O Roberto
colocou ele na Presidência e depois tirou. Durou pouco. Ele se enganou”, disse
com candura dona Lily no lançamento do seu livro Roberto & Lily, em 2005.
Mas essa não foi uma ação isolada. Para derrotar Lula em 1989, Globo e Veja
faziam dobradinha perfeita, como agora. Demonizavam Lula e exaltavam o jovem
governador de Alagoas, “caçador de marajás”.
Essa articulação tornou-se hoje mais orgânica. A presidenta
da Associação Nacional de Jornais (ANJ), que representa os proprietários de
veículos, Judith Brito, assumiu o papel de oposição ao governo Lula. De modo
mais discreto, mas não menos eficiente, trabalha o Instituto Millenium, que
reúne articulistas, jornalistas e patrões da imprensa. E realiza eventos em que
os convidados aliam-se ao que há de mais conservador na sociedade para afinar
suas linhas de cobertura. Em um deles estavam Roberto Civita (Abril), Otavio
Frias Filho (Folha) e Roberto Irineu Marinho (Globo). Vários colaboradores,
exibidos no site do instituto, escrevem e falam contra as cotas raciais nas
universidades, criticam a política econômica dos governos Lula e Dilma, seja
qual for, louvam o governo Fernando Henrique Cardoso, discordam da atual
política externa brasileira e fizeram campanha contra a criação da CPMI do
Cachoeira. São ações orquestradas que lembram as do Ibad, antes mencionado.
As evidências atuais indicam a necessidade de uma
investigação séria sobre o papel de setores da mídia no caso Cachoeira. Os
indícios vão além do jogo político e apontam para conluios com o crime comum.
No entanto, até o momento, a CPMI não mostrou disposição para enfrentar o poder
da mídia, que, quando acuada, conta com a defesa não apenas dos proprietários
como também de parte de seus empregados. Cabe lembrar a observação frequente do
jornalista Mino Carta sobre a peculiaridade brasileira de jornalista chamar
patrão de colega. Com isso diluem-se interesses de classe e uma difusa
“liberdade de imprensa” é utilizada para encobrir contatos altamente suspeitos.
Até entidades respeitáveis como a Associação Brasileira de
Imprensa, por seu presidente, Maurício Azêdo, confundem as coisas. Em
depoimento ao programa Observatório da Imprensa, da TV Brasil, Azêdo não admite
a ida de jornalistas à CPMI para prestar depoimentos, sob a alegação de
intimidação ao trabalho jornalístico, mas condena a promiscuidade de alguns
profissionais com fontes próximas ou ligadas ao crime. Com isso dá ao
jornalista uma imunidade que nenhum outro cidadão tem.
Nesse mesmo programa, o professor Venício Lima ressaltou o
impacto do caso das escutas ilegais promovidas pelo jornal News of the World
sobre as relações mídia-sociedade na Inglaterra. “Levou Murdoch (o dono do
jornal) e seus jornalistas a depor não só na Comissão de Esportes, Mídia e
Cultura da Câmara dos Comuns como na Comissão Leveson, que tem caráter de
inquérito policial.” Nada disso ameaçou a liberdade da imprensa britânica.
Aqui, apesar da resistência com forte apelo corporativo da mídia e de parte dos
seus empregados, vozes importantes lembram que ninguém está imune a convocações
feitas pelo Congresso Nacional para prestar esclarecimentos.
À Record News, o presidente da Câmara dos Deputados, Marco
Maia (PT-RS), foi direto ao ponto: “Todos devem ser investigados no setor
público, privado e na imprensa. Sem paixões e sem arroubos. Nós vamos descobrir
muitas coisas quando forem feitas as quebras de sigilo – o fiscal, por exemplo.
Devemos apoiar sempre a liberdade de expressão. Mas não podemos confundi-la com
uma organização criminosa. Para o bem da sociedade e da própria liberdade de
expressão.”
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