Por Mino Carta, na Carta Capital.
ALBERTO SORDI E A MÍDIA NATIVA.
Lembrei-me de um filme de Alberto Sordi, tempos de comédia à
italiana. Não recordo o título, mas de uma sequência a seu modo antológica. A
mulher sai de viagem e o marido, Sordi, decide convocar a amante em domicílio. Golpe
de cena. A dona da casa antecipa o retorno sem pré-aviso e encontra os dois na
cama que supunha ser da sua frequentação exclusiva.
Tragédia? Os gritos da legítima chegam ao céu enquanto Sordi
e a clandestina, impassíveis, erguem-se do tálamo e com extrema precisão nos
gestos, e sem apressar o ritmo, retomam seus trajes e os envergam um a um.
Enfim vestida, a amante sai do quarto de passo altaneiro. A esposa traída
continua aos berros e Sordi pergunta, pacato: “Mas que aconteceu?”
“Sem-vergonha – uiva a mulher –, você ousa trazer a amante para a nossa casa.”
“Mas que amante? Nunca tive amante…” “Estava com você, na cama, seu
desgraçado!” “Quem? Como? Cadê a senhora em questão? Ora, este quarto está
exatamente como você o deixou. Você inventa, sofre de miragens, sonha de olhos
abertos, deve estar doente…”
Veio a lembrança por causa da semelhança entre o
comportamento de Sordi e aquele da mídia nativa, a despeito de uma diferença
flagrante: o ator suscita a risada, mas a personagem é obviamente paradoxal, a
mídia nativa atua no mundo real e não faz rir. Além disso, não se parecem a
plateia verde-amarela e a mulher traída. Quem pretende saber das coisas
exclusivamente por meio dos jornalões, do Jornal Nacional e emissoras de rádio
e tevê assemelhadas, não terá motivo algum para protestar, acreditará nas verdades
do jornalismo pátrio.
Sordi interpreta uma ficção farsesca. Já uma fatia de
brasileiros vive uma farsa sem dar-se conta, presa da convicção da mídia de que
tudo quanto não noticia simplesmente não aconteceu. E isto sim deixa de ser
farsa para ganhar foros no mínimo de drama. Leio que mídia e diversão
movimentaram no Brasil 1,6 trilhão de dólares no ano passado, o que, nesta
classificação, coloca o País em nono lugar no mundo. O número impressiona.
Induz, porém, a uma consideração inescapável: parte deste rio de dinheiro não é
gasto para o bem da Nação.
Ocorre-me um exemplo recente, vamos intitulá-lo “O incrível
Caso Gilmar Mendes”. Há três semanas as gravíssimas acusações dirigidas pelo
ministro do Supremo contra o ex-presidente Lula tomaram conta do noticiário e
contaram com manchetes retumbantes. Tratava-se, segundo a mídia nativa, de um
dos maiores escândalos da história da República desde que à palavra de Mendes
foi dado crédito absoluto antes mesmo de uma apuração superficial. O acusador,
rapidamente, soçobrou em suas próprias contradições e sobre o naufrágio o
silêncio se fechou para relegar ao esquecimento uma crise que, de acordo com a
profecia midiática, haveria de comprometer o futuro do governo e do País. Se
quiserem os críticos mais olímpicos, “O incrível Caso Gilmar Mendes” comprova
apenas que nenhuma bala é perdida.
A suspeição de Gilmar Mendes no julgamento do chamado
mensalão é evidente até na percepção do mundo mineral. Caluda, no entanto, e
não se fale mais nisso. Assunto enterrado, e não é como a cabeça do avestruz,
mesmo porque a minoria privilegiada cai alegremente no engodo sem atentar para
o engano. Agora, observem. Na edição da semana passada de CartaCapital o
repórter Leandro Fortes revela algumas grandes mazelas do professor Gilmar, contraventor
como sócio de um instituto de ensino na -quali-dade de magistrado e acusado de
falcatruas por outro que lhe seguiu as pegadas. A questão é séria e formulada
com a devida solidez. Em outro país democrático e civilizado, e em
circunstâncias análogas, a mídia iria atrás. Repercutiria, como se diz. Aqui,
silêncio abissal.
Eis um trivial, como arroz e feijão. Disse, e me arrependo,
infelizmente o arroz e o feijão já eram, soou a hora sinistra das fritas com
ketchup e dos Big Macs. Eis o clássico atual que se presta à comparação. A
mídia nativa só oferece eco imediato às denúncias de quem pensa igual,
independentemente da consistência da denúncia. Assim há de ser, a demonstrar
que o fato não se deu se não for noticiado pelos eleitos. Donde, omissão absoluta
em relação à reportagem de Leandro Fortes.
Única exceção a coluna de Elio Gaspari, e mesmo assim
sem citar CartaCapital. Consta que tal é o estilo do colunista, falar de quem
escreve e não de quem publica. Talvez ele se inspire em sua própria situação, a
de quem cabe nas páginas de órgãos diversos, embora todos alinhados do lado dos
inquisidores da reação. Declinar o nome de quem publica é, contudo, importante.
Eu me pergunto se a reportagem de Leandro Fortes acharia espaço, por exemplo,
na Veja, ou em O Globo.
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