Elis Regina - "O Bêbado e a Equilibrista"
O Bêbado (1) e a Equilibrista (2)
Letra João Bosco e Aldir Blanc, 1969
Caía (a) a tarde feito um viaduto (3)
E um bêbado trajando (b) luto (4) me lembrou Carlitos (c)
A lua (5) tal qual a dona do bordel (6)
Pedia a cada estrela fria (7) um brilho de aluguel (8)
E nuvens (9) lá no mata-borrão (d) (10) do céu (11)
Chupavam manchas (12) torturadas (13), que sufoco (d) louco
O bêbado com chapéu coco fazia irreverências mil (14)
Pra (f) noite do Brasil (15), meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil (16)
Com tanta gente que partiu (17) num rabo-de-foguete (g)
Chora a nossa pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarisses (18) no solo do Brasil
Mas sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente
A esperança dança na corda bamba de sombrinha (h)
E em cada passo dessa linha pode se machucar
Azar (i), a esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar
Comentários gerais.
(a) Ao cair da tarde significa ao fim da tarde, o pôr do sol. Também se pode dizer o cair da noite, que é um pouco mais tarde, quando já não se tem nenhum sinal do sol e a noite está declarada.
(b) Vestindo.
(c) É como chamamos carinhosamente o vagabundo personagem de Charles Chaplin.
(d) Equipamento de escritório que caiu em desuso juntamente com as canetas-tinteiro.
(e) Um sufoco, no sentido figurado, significa uma situação sem saída, desesperada. Pode-se dizer assim: "Estou no maior sufoco."
(f) Pra = para. Por ser uma palavra monossílaba, temos a tendência de acentuá-la, o que seria um erro, já que "para" não é acentuada.
(g) Significa uma situação potencialmente perigosa, uma "furada", uma "fria". Pode-se dizer assim: "Entrei numa (canoa) furada" ou "Entrei numa fria" ou "Entrei pelo cano" ou ainda "Peguei um rabo-de-foguete."
(h) Existe a sombrinha, que é um guarda-chuva pequeno, geralmente colorido que pode ser usado tanto para se proteger do sol como em dias de chuva. Privativo das mulheres. Existe também o guarda-chuva propriamente dito, maior do que a sombrinha, geralmente preto e utilizado por ambos os sexos.
(i) Uma expressão de desprezo pela sorte, de ausência de medo. Após receber uma advertência sobre algum perigo que desprezamos podemos dizer: "Azar!", ou "Dane-se!" ou "Não estou nem aí!" ou ainda "E daí?!"
Comentários políticos:
(1) O bêbado representa os artistas, poetas, músicos e "loucos" em geral, que embriagados de liberdade ousavam levantar suas vozes contra a ditadura.
(2) A equilibrista era a esperança de democracia, um projeto de abertura política gradual, que a cada "eleição", a cada evento que incomodava os militares (passeatas, etc), tinha sua existência ameaçada.
(3) Um viaduto, obra do governo, caiu, desabou sobre carros e ônibus cheios de pessoas, matando muita gente. Na época, nada pôde ser noticiado nem as pessoas foram devidamente ressarcidas ou indenizadas. Cidade de Belo Horizonte, viaduto da Gameleira, década de 70.
(4) Referência aos militantes de esquerda que foram "sumidos" ou declaradamente assassinados sob tortura.
(5) A lua representa os políticos civis que se colocaram a favor do regime, a fim de obter ganhos pessoais. Eles "acreditavam" tanto na propaganda oficial que se dizia que se um general declarasse que a lua era preta eles passariam a defender tal tese como verdade absoluta. Em determinada época foram até chamados de luas-pretas.
(6) A Câmara de Deputados e o Senado foram algumas vezes comparados a bordéis devido aos negócios imorais que lá se faziam. É claro que os cidadãos indignados não podiam dizer claramente que pensavam isto, ou seriam no mínimo processados por calúnia, injúria, difamação e etc.
(7) As estrelas são os generais, donos do poder. Alguns deles nunca apareceram como governantes, preferindo manipular nos bastidores. Se contentavam com uns poucos privilégios astronômicos e umas ninharias de cargos de direção em estatais ou o poder de nomear umas poucas dezenas de parentes e correligionários em empregos públicos.
(8) O brilho de aluguel era, como mencionado acima, os ganhos pessoais e até eleitorais obtidos pelos civis que aceitavam ser marionetes. Alguns destes civis cresceram tanto que altrapassaram em poder os seus "criadores" fardados.
(9) Os torturadores são aqui comparados a nuvens, pois eram intocáveis e inalcançáveis.
(10) O mata-borrão é um instrumento antiquado destinado a eliminar erros, borrões na escrita. O DOI-CODI, nossa temível polícia política da época era o mata-borrão do regime (instrumento antiquado destinado a eliminar erros).
(11) As prisões eram inalcançáveis ao cidadão comum, inacessíveis, por isso a comparação com o céu.
(12) Os rebeldes são comparados a manchas, ou seja um erro na escrita, uma coisa fora da ordem, uma indisciplina.
(13) Referência à tortura aplicada aos militantes de esquerda, que ocorria às escondidas. O regime jamais admitiu que torturava pessoas, porém nunca houve punições aos casos que conseguiam alguma divulgação, apesar da censura à imprensa.
(14) Os artistas nunca se calaram. Esta música, ele própria é uma das irreverências.
(15) Um tema recorrente nas músicas da época. A volta das liberdades políticas é comparada ao amanhecer, bem como a ditadura é comparada à noite.
(16) O Henfil (Henrique Filho) era um afiadíssimo cartunista político muito visado pelo regime, bem como seu irmão o Betinho, que no governo Fernando Henrique organizou o programa de combate à fome. Os dois eram hemofílicos e morreram de Aids.
(17) Referência aos exilados políticos.
(18) Maria é a esposa do operário Manuel Fiel Filho morto sob tortura nos porões do DOI-CODI (SP) em janeiro de 1976 e Clarice é a esposa do jornalista Wladimir Herzog, também morto sob tortura, no DOI-CODI (SP) em outubro de 1975.
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