quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Os passos, contra-passos e impasses da diplomacia norte-americana.

A política dos Estados Unidos na recente crise do mundo árabe é atravessada por pressões internas e externas, expondo contradições, tensões, choques e rivalidades. Não dá para "ler" o governo norteamericano, como ifenso a essas tensões e contradições.
Uma maneira algo ingênua, embora possa ser bem intencionada, de olhar para as atitudes dos Estados Unidos na recente crise do mundo árabe – em especial a do Egito – é ver o governo norte-americano como se ele fosse um tijolo. Ele seria uno, indivisível e teria em mãos uma espécie de guia eletrônico que, como uma flecha, ditaria o que e quando fazer em cada avanço, recuo ou estagnação.
Um olhar mais perscrutador consegue perceber as frinchas e os cisalhamentos que submetem as atitudes da e dentro da superpotência a pressões internas e externas, expondo contradições, tensões, choques e rivalidades. Isso não torna a mão de Washington mais leve na política do mundo. Mas exige bastante complexidade e sofisticação na leitura do que essa mão intenta e o que de fato faz, sendo uma coisa pior do que a outra conforme a ocasião.
Um olhar sobre a contradança que está presidindo a política norte-americana em relação ao Egito pode elucidar a complexidade da questão. Um bom ponto de partida, por sinal, é o artigo de Julian Borger em seu Global Security Blog no The Guardian, de 06/02/11, “The Egyptian Crisis: another day, another two US policies”.
Ele relata o que aconteceu no dia 05 de fevereiro, sábado, à tarde, na 47ª Conferência Mundial sobre Segurança, em Munique, na Alemanha. No começo da tarde, a Secretária de Estado Hillary Clinton deixou claro que os Estados Unidos preferiam uma “transição egípcia” liderada pelo vice-presidente recém nomeado Omar Suleiman, chefe da política durante a ditadura de Hosni Mubarak, aparentemente o novo homem forte no governo.
Mais adiante, numa intervenção através de uma tele-conferência, o diplomata aposentado Frank Wisner, que fora enviado especial de Washington ao Cairo para dar o “recado” ao presidente Mubarak de que a mudança deveria começar imediatamente, fez uma intervenção bombástica.
Sem avisar Hillary Clinton, ele a contradisse, afirmando que a permanência de Mubarak na presidência até setembro era fundamental para que a transição se desse de forma ordenada, isto é, de forma a não romper a “pax romana” da região.
A saia justa foi de tal tamanho que seguiram-se declarações do Departamento de Estado dos EUA de certa
forma desautorizando a fala de Wisner. E Hillary ficou pendurada no pincel durante alguns momentos, até recompor a perspectiva inicial como sendo a preferida pelo governo norte-americano.
Um olhar superficial poderá ver apenas um jogo de cena no incidente constrangedor para a Secretária de Estado, um tanto divertido para quem vê a coisa de fora. Hillary deu no cravo, Wisner na ferradura: o importante é o cavalo (no caso, o Egito) continuar ferrado. Em caso de dúvida, bata aqui, ali, lá e acolá: aconteça o que acontecer, o rumo dos acontecimentos estará contido na fala imperial.
É uma leitura interessante. Mas uma outra leitura é possível.
No fim de contas, quem é Frank Wisner? Por que ele estava lá, no Cairo. A resposta tem uma dupla face.
Frank Wisner II é um diplomata de carreira, que atuou de 1961 até sua aposentadoria em 1997, em diferentes setores das relações internacionais de Washington. Serviu 8 presidentes, e foi, entre outras funções, embaixador no Egito de 1986 a 1991. Seu pai, Frank Wisner Sênior, também teve envolvimentos diplomáticos, tendo trabalhado para a derrubada do governo legítimo de Jacobo Arenz, da Guatemala, em 1954, e de Mossadegh, na Pérsia, hoje Irã, em 1953, como um dos diretores de estratégicos da CIA.
Frank Wisner, depois da aposentadoria, passou a trabalhar para a empresa Patton Boggs (informações de Robert Fisk no Independent, 07/02/11) que é uma das conselheiras para o Exército Egípcio, para a Agência para o Desenvolvimento Econômico do Egito, e que mantém vínculos estreitos com diversos setores da elite econômica do país, inclusive com o Banco Nacional do Egito, o mais antigo e maior no ramo.
O que fez Hillary Clinton despachar este diplomata para o Cairo? Talvez a pressa de se manter na crista da onda em matéria de política para a região, talvez a busca da certeza de que o seu recado chegaria de fato aos ouvidos de Mubarak, despachando alguém familiar com o alto milieu do Cairo.
O que aconteceu? Como bom diplomata, Wisner foi, falou e voltou. Na ida, deu o recado, sem dúvida. Mas na volta, diplomata aposentado que é, sem compromisso com a atual política de governo, deu o seu recado.
Afinal, Wisner passou a vida inteira, entre outras coisas, montando o atual dominó norte-americano de ditaduras na região, que agora ameaça desabar – e ainda com um empurrãozinho a mais – desastrado, na sua visão – de Washington, a pedir que um novo governo egípcio negocie com opositores reprimidos por tanto tempo.
Quer dizer: além de lidar com revoltas imprevistas, o governo norte-americano, que tem suas contradições internas (a cúpula democrata, partidária de Clinton, não engoliu Obama, nem mesmo sua vitória inicial na questão do plano de saúde), tem também que lidar com um “segundo escalão” arredio, ufanista de sua visão anterior, arrogante e disposto a não abrir mão das prerrogativas de sua tradição política.
A esse complicado imbróglio interno, se soma o externo. Para começo de conversa, o lobby pró-permanência de Mubarak é liderado por Israel, Arábia Saudita, Jordânia e Emirados Árabes Unidos. Estão todos tementes de que a derrocada de Mubarak signifique a derrocada dos demais governos no mundo árabe.
Enquanto isso, o cenário onde Hillary Clinton se move, apesar de seu peso como superpotência, é complexo demais. Veja-se quem participou, naquele mesmo sábado do choque de declarações, da superreunião sobre a crise egípcia, em Munique: além de Clinton, o Secretário-Geral da ONU, Ban ki-Moon, o enviado especial para o Oriente Médio George Mitchell, a Representante da União Européia para Relações Exteriores e Política de Segurança, Catherine Ashton e nada mais, nada menos que Sergey Lavrov, Ministro de Relações Exteriores da Rússia. O governo de Obama está tentando montar – e isso sim pode vir a ser uma novidade – uma frente com os russos (o que inclui, de outro modo, o Brasil) contra o peso chinês no mundo e na economia mundial – o que implicaria uma reviravolta enorme na estratégia política e militar da OTAN.
No mesmo encontro de segurança, o Vice-primeiro-ministro russo, Sergei Ivanov (não confundir com o Sergey anterior) defendeu a inutilidade de novas sanções contra o Irã, numa posição, pasme a nossa direita, com pontos de contato com a brasileira. A Rússia, como líder da antiga União Soviética, está interessada na idéia dessa reviravolta norte-americana na Europa (que seria apoiada pela Alemanha, a quem não só não interessa ter vizinhos como a Polônia, República Tcheca e outros mais distantes com forte presença militar, como também interessa um relacionamento apaziguado com a Rússia). E pretende se valer dela para voltar a “acaudilhar” sua antiga área de influência, o que agora está fazendo pela via econômica, mas com a sombra militar, como no caso da crise da Geórgia e da Ossétia. É bom lembrar que o Egito já foi área de influência da União Soviética, e que um escorregão norte-americano nessa frente pode abrir uma brecha sem tamanho para a volta do dedo russo. Dedo este que, por sua vez, já está fincado no Irã, inclusive na suas atividades nucleares.
Diante desse quadro, fica clara a existência de dois vetores (pelo menos, senão mais) na política norte-americana para a região e o problema: um que aposta na cooptação das forças emergentes nos movimentos por maior democracia no Egito (peça-chave) e na região, inclusive a Irmandade Muçulmana; outro que aposta, como sempre, na sua contenção e repressão, uns de forma mais mitigada do que a atual, outros não. Veja-se a entrevista do Senador John McCain à revista Der Spiegel, em que defende, como sempre, a idéia de que a Irmandade Muçulmana deve ser banida das negociações no Cairo “They shoul be excluded from any transition government”, 06/02/2011, www.derspiegel.de/international.
Quer dizer, não dá para “ler” o governo norte-americano, apesar das suas diretrizes estratégicas permanentes, como infenso a tensões e contradições.
A situação é mais complexa do que jogo de truco num bolicho (*) domingueiro.
(*) Boteco, em geral de beira de estrada, no Rio Grande do Sul e, por extensão das vagas migratórias, no Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Rondônia. Quanto ao jogo do truco e sua complexidade, bom, a Wikipédia está aí para isso.

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