domingo, 1 de maio de 2011

DO FUNDO DA MEMÓRIA III

Por Carlos Chagas
Dos Juristas aos Jurilas.
Quarenta e sete  anos depois,  sobrou o quê, do movimento militar de 1964? Para começo de conversa, cobranças,  mesmo com o tempo fazendo a  poeira  assentar.  Cobranças de parte a parte.
De um lado, existem os que  continuam criticando, protestando e apresentando a  conta.   São os que,  de uma forma ou de outra,   viram-se   atingidos pela truculência do regime.  Não apenas os torturados, exilados, censurados, demitidos e marginalizados. Ou seus familiares, se eles  não estão mais entre nós.
Muitas   instituições também tem o que cobrar.  A imprensa, por exemplo, obrigada a omitir tudo o que prejudicava os donos do poder.   Sem esquecer que a maior    parte dos veículos de comunicação da época   esmerava-se  em divulgar aquilo que agradava os poderosos. Temendo represálias ou programando  benesses, acomodaram-se quase todos os barões da mídia  e muitos de seus acólitos.   Seria menos ridículo    que,  hoje,   certos  falsos heróis de uma  resistência inexistente  ficassem calados ao invés de tentarem  faturar aquilo que não praticaram.
De um   modo geral,   porém, a imprensa sofreu e involuiu. Jamais as tiragens dos jornais ficaram tão reduzidas,  proporcionalmente ao número de leitores. “Comprar jornal  para quê?” – insurgia-se o cidadão  comum, se era para ler  elogios ao falso milagre brasileiro ou, em contrapartida, versos de Camões ou receitas culinárias.  Com a  televisão e o rádio,  perseguidos até no roteiro de suas novelas, pior ainda. Transmitiam a impressão de vivermos num outro mundo.
Massacrados da mesma forma foram os advogados. O regime confundia o sagrado dever de defender o semelhante com a integração  obrigatória  do defensor nas práticas do  réu. Um monumento deveria ser erigido ao Advogado Desconhecido, mesmo a gente conhecendo o nome da maioria desses abnegados  bacharéis que honraram a profissão. E sofreram por isso.
Sofreu também  o Poder Judiciário, atingido em seus tradicionais predicamentos constitucionais  de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos. Ministros dos tribunais superiores e simples juizes de primeira instância, intimidados, acomodados  ou dispostos à resistência,  assistiram desmanchar-se   a estrutura fundamental da democracia, erodida por absurdos como o de que os atos revolucionários seriam insusceptíveis de apreciação judiciária. É claro que também pontificaram os  “jurilas” de todas as ditaduras, misto de juristas e de gorilas tão a gosto do regime.   Reconheça-se o papel altivo do Superior Tribunal Militar, que num sem-número de ocasiões desfazia aquilo que nas instâncias inferiores  a voracidade da exceção buscava transformar em regra.
Os políticos, da mesma forma, perderam o que lhes restava de credibilidade junto à  opinião pública. A sombra das cassações de mandatos e das  suspensões de direitos políticos só não agredia tanto  a prática parlamentar quanto os ucasses que transformaram o Congresso em apêndice desimportante do Executivo. Atos institucionais, atos   complementares,  decretos-leis, casuísmos, fechamentos  e recessos parlamentares fizeram com que a atividade  política e eleitoral  se transformasse em  objeto de chacota nacional.  Num determinado momento, para sepultar laivos de independência,    os militares dissolveram os partidos,  criando o bipartidarismo obrigatório. Para continuar na política seria  pertencer ao  partido do “sim”, a Arena, ou ao  partido do “sim senhor”, o MDB, mais tarde inflado pela indignação, transformando-se  num dos  principais  aríetes responsáveis pelo fim da ditadura.  Para cada dr. Ulysses ou para cada “autentico” que se insurgia, centenas de desfigurados  marionetes candidatavam-se a se   ajoelhar  no altar da exceção.
O movimento sindical implodiu nos primeiros dias do novo regime. Perseguidos como inimigos públicos,  os tradicionais líderes trabalhistas desapareceram nas masmorras,  no exílio ou no esquecimento.   Terá sido este um dos erros fundamentais da ditadura, porque, conforme a natureza das coisas, em política não existem espaços vazios. Foram-se os dirigentes em grande parte  viciados pelo sabujismo ao ministério do Trabalho, mas emergiram líderes operários  autênticos.  Vem daí as origens do Lula e de muitos outros.
O mesmo aconteceu no movimento estudantil. Perseguidos,  eclipsaram-se os estudantes profissionais que dominavam as organizações de classe,  boa   parte atrelada ao ministério da Educação.   Ganharam o exílio aqueles que tentavam renovar as estruturas viciadas vindas do Estado Novo, como José Serra, o último presidente da União Nacional dos Estudantes, obrigado a refugiar-se no Chile.  O fenômeno foi o mesmo dos sindicalistas:   surgiram dirigentes de verdade, oriundos dos bancos escolares. José  Dirceu, Wladimir Palmeira, Jean Marc, Alfredo Sirkis, Honestino Guimarães, Franklin Martins e quantos mais?  Identificados, após ações de toda espécie, até tresloucadas e  radicais, acabaram detidos, alguns desaparecidos até hoje,  mas plantaram a semente.  Ainda agora  o movimento estudantil pertence aos estudantes.
A cultura vergou mas não  quebrou. Das músicas de protesto ao teatro de arena e de vanguarda, das entrelinhas do “Pasquim” à poesia de combate e ao cinema novo,   os intelectuais resistiram. Tornaram-se figuras de expressão nas passeatas, nos manifestos e na arte de estrilar.   Apanharam, foram presos e muitos se exilaram. Imagina-se o que teriam produzido em regime de liberdade plena. Talvez bem menos do que produziram sob pressão.
Esse tipo de  cobrança estende-se até  nossos dias, ainda que cada vez mais  esmaecido pelo tempo, com as exceções de sempre. Intelectuais, estudantes,  operários, políticos, magistrados, advogados e jornalistas, em  maioria, não esqueceram.  Talvez nem tenham perdoado, ainda que lentamente varridos  pelos ventos da renovação. 

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