segunda-feira, 2 de maio de 2011

DO FUNDO DA MEMÓRIA IV

Por Carlos Chagas.
Resistência não houve ao movimento de 1964, logo depois  de sua eclosão. O governo deposto e seus aliados buscaram refúgio no exterior,  no anonimato e no silêncio,  quando não em traições    e falsas adesões.  Só  mais tarde, aos poucos, sobreveio a inexorável  reação nacional  ao arbítrio e à truculência.
João Goulart exilou-se  no Uruguai, seguido quinze dias depois por Leonel Brizola, frustrado pela impossibilidade de repetir 1961.  Ministros pedindo asilo em embaixadas, líderes políticos,  sindicais e estudantis perseguidos,  intelectuais  obrigados à clandestinidade. Do outro  lado,  desenfreada euforia nas elites, celebrações na maior parte da  classe média, passeatas monumentais de dondocas de salto alto,  marchas “da Família com Deus e pela Liberdade”.  E o  telegrama de congratulações  passado pelo presidente dos Estados Unidos, Lyndon Johnson.
Não faltou   a frenética busca de heróis para exaltar,  por parte de  uma imprensa há muito posta a serviço do golpe. Foi um golpe,   aliás, para a mídia  pressurosa em bajular os novos donos do poder,   quando o general Mourão Filho resolveu conceder uma entrevista.  Triste por haver sido  marginalizado com sua nomeação para  presidente da  Petrobrás,  ele surpreendeu os jornalistas definindo-se como “uma vaca fardada”.
Os generais  tomaram a chefia do movimento,   isolando   políticos espertos que  imaginavam  ocupar o palácio do Planalto através do eterno substituto,  Raniéri Mazzilli, presidente da Câmara. No Rio, formou-se uma Junta Militar, denominada Comando Supremo da Revolução, com o general Costa e Silva, o almirante Augusto Rademaker e brigadeiro Francisco de Assis Correia de Mello. Frustrou-se a tentativa deles  permanecerem  indefinidamente no comando da nação, mesmo depois que buscaram  legitimar-se através de um instrumento de exceção, o Ato Institucional que não tinha número, pois se presumia fosse único. O autor? O mesmo da Constituição fascista de 1937, o jurista Francisco Campos, aliás, “Chico Ciência”.
O sentimento então   predominante  nas Forças Armadas, impulsionado pelas  críticas generalizadas do   mundo democrático, acabou  levando um Congresso desmoralizado, sem representatividade por conta de dezenas de cassações,  a  eleger o marechal Castello Branco para completar o  malfadado   mandato antes pertencente a Jânio Quadros e depois a João Goulart.
Quarenta anos depois, importa reunir os argumentos e o sentimento  verificados   entre os  militares de hoje,   a respeito da intervenção de seus antecessores.      A versão deles,  os  atuais e os que restaram daqueles  idos, beira também a cobrança e insurge-se contra a interpretação    feita  pelos adversários.
Em primeiro lugar, dizem, só saíram dos quartéis quando estimulados pela opinião pública. Poderia ter sido   a opinião publicada,  mas tanto  faz. Caso João Goulart não fosse levado à ilusão de quebrar a hierarquia castrense, é possível que permanecessem apenas na resistência ao que imaginavam a  tentativa de decretação da República Sindicalista do Brasil.  O planeta encontrava-se dividido em duas ideologias distintas e, sem a menor dúvida,  por formação e indução, as Forças Armadas integravam o bloco liderado pelos Estados Unidos. Era inadmissível para eles cair nos braços da outra superpotência, a União Soviética.
Não dispunham de plano ou programa de governo. O poder   caiu-lhes   nos ombros sem  estar preparados para ele.  Concordam, os de hoje, com o diagnóstico feito na época pelo então deputado Pedro Aleixo: não se tratava de uma revolução, mas de uma contra-revolução.
Os generais de agora  eram aspirantes ou tenentes, em 1964. Cumpriam ordens, tomavam conhecimento dos fatos pelos jornais,  mas mantém lealdade e respeito diante da ação dos antecessores. Apesar disso, reconhecem  o erro que foi não ter sido  devolvido o poder aos civis, depois de Castello Branco.
Recusam  o rótulo de torturadores para os chefes de antanho,  ainda que não  neguem  as torturas praticadas. Era uma guerra, acentuam, com o outro lado assaltando, matando, sequestrando e intranquilizando – o que é verdade. Muitos militares  foram sacrificados naquela absurda luta  entre brasileiros. Discordam, é evidente,  dos  métodos ainda recentemente expostos em livro pelo jornalista Elio Gaspari, autor da triste revelação de que o general Ernesto Geisel concordava com a eliminação física de guerrilheiros e terroristas.
Sustentam os militares de hoje que apesar da ojeriza às esquerdas e ao comunismo,  mesmo sendo  mais  generais do que presidentes, os cinco generais-presidentes souberam manter firmes as estruturas da soberania nacional e a presença do Estado nas atividades fundamentais da nação. Não   passou pela cabeça de nenhum deles    privatizar a Petrobrás, a Vale do Rio Doce, a siderurgia, a navegação de cabotagem,  o sistema de geração de energia elétrica e, em especial, o sistema de telecomunicações, que implantaram. Antes dos governos militares, o Brasil se comunicava com o Brasil pelas linhas telefônicas e por um precário sistema de rádio.   A rede de  micro-ondas havia sido iniciada por Juscelino Kubitschek, mas foi a partir de 1964 que passou  a integrar nossas  diversas regiões, depois interligadas pelos satélites, nos quais  se  investiu  para valer.  Nosso ingresso na energia nuclear também  aconteceu   naquele período, enquanto se construíram usinas hidrelétricas do porte de Itaipu.  Até a industria bélica se afirmou, com a produção de tanques, carros de combate e armamento sofisticado, que exportamos por vários anos, antes de sua destruição por obra de manobras estrangeiras.  Para não citar a indústria aeronáutica,  sobrevivendo até agora.
A defesa da Amazônia tornou-se uma obsessão através do  mote “integrar para não entregar”. Chegamos a romper o acordo militar com os Estados Unidos.
Uma constatação também  feita pelos  militares de hoje é de que durante a vigência do regime de 1964 a política econômica,  mesmo alinhada ao mundo  ocidental, jamais favoreceu a especulação financeira desmedida ou  serviu para sufocar a indústria nacional. Muito menos a dívida externa tornou-se impagável.   Nem o desemprego, a indigência, a fome,  a miséria e a violência urbana nos assolavam tanto quanto  neste início de novo século.  Se havia inflação, havia   reposição salarial.
Em suma, quarenta anos depois, os militares continuam   rejeitando a análise  de que  o  movimento de 1964 se resume aos   excessos praticados, que reconhecem.

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