quarta-feira, 2 de novembro de 2011

DIAS DE EXTRAORDINÁRIA TRANSPARÊNCIA


Por Saul Leblon, na Carta Maior.
A convivência nunca harmoniosa entre democracia e capitalismo avança para um estágio de antagonismo explícito na crise das finanças desreguladas. As marcas se sucedem a desmentir os teórico da endogamia entre produção de mercadoria e de cidadania; entre livres mercados e liberdade humana.
A estaca da 3ª feira, porém, espetou um ponto de contradição indissimulável, quando o primeiro ministro Yorgos Papandreu acenou com uma consulta popular sobre planos de ajuste ortodoxo até agora sancionados à revelia da sociedade grega. Deu-se então um streap-tease histórico: o poder coercitivo invisível das finanças revelou as avantajadas angulações de uma lógica que reduz a Grécia a um protetorado, sob o julgo do capital financeiro.
Banqueiros e lideranças do euro foram ao ponto e à mídia obsequiosa: e dispararam recados ameaçadores a Atenas. Não importa o que digam. Seu nervosismo derruba o biombo da generosidade que cercou o anúncio de um 'desconto' de 50% da dívida do país. A dimensão insuportavelmente espoliativa do programa que vem sendo imposto à Grécia custa mais que o 'default administrado'. Mesmo porque, a propaganda é enganosa: trata-se de uma operação contábil de salvação de bancos e não da economia ou da sociedade. Segundo o Financial Times, os 50% referem-se à dívida privada e não ao passivo total. O 'hair cut' de 100 bilhões de euros sobre o passivo em mãos de instituições financeiras seria rebatido por duas operações cujo custo recairá de novo nas costas do povo grego. Cerca de 30 bilhões de euros seriam emprestados pela troika (FMI, BCE e CE) aos credores estrangeiros para mitigar suas perdas; outros 30 bi de euros dariam um cala-boca na banca privada grega. Na troca de dívida privada por dívida pública o 'desconto' generoso oferecido a Atenas cairia de 100 bi para 40 bi.
São concessões insuficiente para refrear taxas de suicídio que disputam o ranking de velocidade com índices de desemprego e pobreza. O verdadeiro
'hair cut' em marcha, assim, continuaria a ter como alvo o escalpo de uma população martirizada há mais de dois anos pela austeridade ortodoxa. Execrado, como deve ser, num eventual referendo popular esse arranjo descredenciaria a receita e os 'chefs' da gororoba indigesta em outras praças e urnas. Os mercados farejaram o desastre e despencaram nesta 3ª feira (leia a reportagem do correspondente em Berlim, Flávio Aguiar).
Para coroar o festival de desnudamento, o partido socialista de Papandreu rebelou-se contra a idéia de ouvir os cidadãos sobre o destino do país. E, nesta 4ª feira, coube ao vice-chanceler alemão, Guido Westerwelle, verbalizar a transparência dos dias que correm: "O plano de resgate europeu para a Grécia não admite discussão",sentenciou herr Westerwelle no melhor estilo germânico.
Quando a realidade dispensa metáforas com essa desenvoltura é porque vivemos tempos extraordinários. A Grécia é o berço da democracia aristocrática que percorreu uma longa trajetória de lutas e revoluções para que os direitos políticos fossem compartilhados pela plebe rude. No Brasil, analfabetos só chegaram às urnas a partir de 1988 e até hoje há quem lamente o mal passo responsável, na visão de certas elites, pela ascensão de Lula ao poder.
A crise do neoliberalismo, porém, evidencia a insuficiência desses avanços. Emparedada entre o imobilismo da esquerda e a supremacia das finanças desreguladas, a democracia viu-se reduzida a uma liberdade desprovida de conteúdo econômico e social. O curto circuito causado pelo gesto de Papandreu ilustra - a exemplo do que tem demonstrado as ruas - a distância que precisa ser vencida para que a coação econômica não se sobreponha mais ao efetivo poder democrático.

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