sexta-feira, 4 de novembro de 2011

DUVIDAR E QUESTIONAR SEMPRE II

Por Carlos Chagas
(Segunda parte do pronunciamento do jornalista Carlos Chagas ao receber o título de Professor Emérito da Universidade de Brasília.)
 Não pode ser nosso propósito analisar as diversas facetas desse complicado poliedro que é a Comunicação Social. Mesmo assim, vale observar a postura adotada por  muitos de nós, impulsionada pela empáfia e a presunção, de julgarem-se partícipes da notícia, não apenas seus observadores. Nariz em pé e impostação de voz, rotulam-se  formadores de opinião, quando na verdade somos apenas  informadores da sociedade. Será conhecendo tudo o que se passa nela de bom e de mau, de certo e de errado, de ódio e de amor, que a sociedade, informada, terá condições de formar-se. Estimulada por mil outros fatores, dos quais somos apenas um.
Pertenço, ironicamente com muito orgulho, à escola da humildade, tantas vezes atropelada pelo ego de companheiros.  Não falo da humildade dos hipócritas ou dos subservientes, mas daquela que nasce do reconhecimento  de sabermos que nada sabemos e que repudiamos a prevalência dos que se apregoam donos da verdade.
Uma falsa humildade expressa na erudição de uns poucos nada mais significa do que a credulidade de muitos.
Uma idéia, depois de pensada, não pertence apenas a  quem pensou. Pertence à humanidade, que deu ao ensador as condições para pensar. Assim também as descobertas.
Indagam os céticos quem deu a nós, jornalistas, o direito de decidir o que é notícia e  o que vai para os jornais, as telinhas e os microfones. A partir dessa questão complicada, vicejam as propostas de censura e controle do conteúdo da informação jornalística.
Respondo com uma pequena história, até para confirmar que por 25 anos fui tido por meus colegas professores e por montes de  alunos como um  contador de histórias.
Nos anos sessenta ganhou a mídia mundial um escritor russo, Alexandre Solghenitzin, que nem tão brilhante assim era, mas criticava o regime soviético em seus romances. Imediatamente descoberto pela CIA, tanto fizeram do lado de cá que  ele acabou proscrito do lado de lá.  Cassaram-lhe a carteira do sindicato dos escritores. Pior ficou sua situação quando, sabe-se lá porque desígnios, foi-lhe dado o Prêmio Nobel de Literatura.
Expulso da União Soviética, imaginaram  passear com ele pelos Estados Unidos e pelo mundo como a prova viva da falência do sistema socialista. Negando-se a parecer como a girafa do Jardim Zoológico, Solghenitzin recusou polpudos empregos de garoto-propaganda do capitalismo e aceitou modesto convite para professor de literatura russa numa pequena universidade do  meio-oeste. Recusou-se a conceder qualquer entrevista e lá ficou por cinco anos.  Passado esse tempo, convocou jornais e jornalistas,  anunciando estar agora preparado para falar de seu país natal, depois de conhecer  em parte a vida em seu país de adoção.
Lá compareceram os luminares da imprensa americana, inclusive Walter Cronkite, o Papa  dos comentaristas políticos.
Sem poupar o regime soviético, o singular  escritor começou a falar da sociedade americana, batendo firme em suas contradições. Quando chegou a vez  das imprensa, foi cruel. “Quem lhes deu o direito de saber e de decidir o que é notícia? De apresentar e de omitir informações do público, como se fossem deuses?”
Uma pergunta dos diabos. Foi quando, interrompendo o entrevistado, Cronkite levantou-se num gesto teatral, com a mão no peito e exclamou: “Estou tendo uma ataque cardíaco!”
Estabeleceu-se a confusão e o russo, com o microfone na mão, começou a exortar a platéia: “chamem um médico! Chamem um médico!”
Nessa hora, o americano ficou bom e declarou apenas: “está respondida a sua pergunta...”
Quando se tem uma dor no   peito, a solução é chamar um médico. Quando se prepara um jornal, quem melhores condições para selecionar as notícias e saber o que deve ser impresso, é o jornalista. Aquele que se preparou para a função.
Concluo com mais uma história, um episódio que tantas vezes transmiti a meus alunos. Nos primeiros aos do século passado um ilustríssimo  lente de Física na Sorbonne, o professor Lipmann, costumava dar a aula inaugural aos calouros dirigindo-se a eles de forma pejorativa. Dizia ter pena deles. Dó. Comiseração. Por que haviam decidido estudar Física quando a Física estava pronta, acabada, arrumada e empacotada? Nada havia mais a pesquisar ou descobrir.
Pobre professor Lipmann, que para sorte dele morreu antes de saber da existência de Albert Einstein, da Física Quântica, dos buracos-negros, da incerteza do universo e quanta coisa mais, descoberta e por descobrir?
Despeço-me como antípoda do professor Lipmann. Não tenho pena  dos meus  alunos, nem dos mais jovens que agora cursam a Faculdade de Comunicação. Tenho é uma profunda inveja deles, que chegarão a patamares que a natureza não me permitirá chegar – espero que ainda demore muito.
Não deixo lição alguma, por conta desse imerecido título de Professor Emérito. Ficam apenas exortações:
Devemos rebelar-nos contra os que pretendem resumir a vida a um sistema,  qualquer que seja esse sistema.
Precisamos insurgir-nos diante de ideologias, doutrinas, correntes ou religiões que apregoam dispor de resposta para todas as perguntas.
Havemos de cultuar o na seio irresistível da liberdade tanto quanto o senso grave da ordem.
É essencial sacudirmos a poeira da intolerância dos que apresentam o ser humano como merco conjunto químico dotado de inteligência.
Mas importa relegar ao lixo da História a afirmação oposta, de que precisamos  nos conformar com a injustiça, o obscurantismo, a fome e a miséria nesta vida para recebermos a compensação numa outra, incerta e indemonstrável.
É preciso que nos levantemos contra a ditadura das teorias, tanto quando da teoria das ditaduras.
Acima de tudo, devemos crer no poder da razão, porque da razão nasce a liberdade, da liberdade a justiça,  da justiça, o bem-comum, e do bem-comum, o amor.  O amor, a derradeira oferta do indivíduo à sociedade. E de um velho professor a quantos fizeram o sacrifício de ouvi-lo. 

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