Por Carlos Chagas.
Nos idos de janeiro de 1972, recém-chegado a Brasília para assumir a direção de "O Estado de S. Paulo" na capital federal, ouvi de um amigo que havia passado por aqui o ex-presidente Juscelino Kubitschek, embora proibido pelo governo militar. Ele comprara uma fazendinha lá para os lados de Luziânia e nela costumava refugiar-se com frequência. Mas não podia desembarcar no aeroporto comercial, nos limites da cidade. Obrigava-se a chegar e utilizar um aeroclube na cidadezinha de Formosa, do outro lado do Distrito Federal. Claro que num precário teco-teco.
Telefonei para o presidente, então com gabinete no Banco Denasa, no Rio, que um ex-genro depois fez questão de expulsá-lo, num gesto de ingratidão digno de ficar para a História. JK narrou-me todo o episódio.
Naquela oportunidade, retornando à antiga Capital, como sempre tendo que contornar Brasília, ia na cabine de um caminhão, conduzido por um amigo. Era de tarde, chovia a cântaros. Ele estava sem paletó, de chapéu de palha.
Teve uma tentação, que transmitiu ao amigo: em vez de dar a volta, porque não cortariam caminho passando pelo centro de Brasília? Desde sua cassação em 1964, não podia ver a cidade por ele criada.
Entraram pela avenida do Catetinho, primeira residência para ele desenhada por Oscar Niemayer, nos tempos em que a Capital repousava nas pranchetas. Uma construção de madeira, transformada em museu. Estacionaram defronte e, apesar da água que caia, desceu da viatura. A memória começara a funcionar, trazendo-lhe imagens daquele período desafiante e feliz da construção da cidade. O zelador de plantão, abrigado da chuva, contou haver feito uma promessa, quando se deparou com JK parado, com as mãos na cintura: deixaria de beber naquele momento mesmo! Era um fantasma que estava vendo, apesar de sem gravata e de chapéu de palha.
O caminhão tomou o rumo da cidade e entrou pela Avenida W-3 - Sul, naquela época centro do comércio local. Nem dava para ver direito as lojas e restaurantes, tamanho o aguaceiro, mas ficou impressionado com o número de bancos lá instalados.
Dobraram à direita e entraram na Esplanada dos Ministérios. Diante da catedral, outra parada. Não conhecia o monumento, erigido depois de sua cassação. O motorista foi primeiro, para verificar se havia muita gente na igreja. Se houvesse, não desceria. Sorte: só duas ou três beatas rezando o terço.
Extasiou-se com mais aquela "obra do Oscar". Entendeu de pronto a mensagem das colunas de cimento reunindo-se e tomando o rumo do infinito, como numa oração eterna. Ajoelhou-se, rezou e sentiu o primeiro nó na garganta.
Dali, ainda debaixo do temporal, foram à Praça dos Três Poderes. À direita o Supremo Tribunal Federal, à esquerda o Palácio do Planalto, atrás o Congresso. Diante dele, o pequeno museu da criação da Brasília, com seu rosto gravado em bronze na parede externa. Não se conteve. Suas lágrimas misturavam-se às que caíam do céu. Tinha valido à pena, pensou, sem mágoas para o general de plantão que devia estar no terceiro andar do Planalto.
A saída pela W-3-Norte, ainda incompleta, e um sentimento que, relatou-me pelo telefone, deveria ter sido o mesmo de um súdito das Gálias que pela primeira vez entrasse em Roma. Não falou, mas aquela era a sua Roma, que havia erigido tijolo por tijolo, e que agora lhe negavam a presença.
Anos depois um ex-agente do SNI revelou que o presidente não passara sozinho por Brasília. Fora acompanhado de longe por arapongas, numa viatura encarregada de vigiá-lo permanentemente. O agente contou não ter tido coragem de abordá-lo, exigindo que se retirasse de imediato ou conduzindo-o a um quartel.
Na posse das informações sobre a inusitada visita, escrevi um artigo para "O Estado de S. Paulo", sob o título "Brasília não vê JK chorar", reproduzido em seguida por diversos outros jornais. Começou ali meu relacionamento com o presidente, a quem tinha visto e entrevistado no passado apenas de forma profissional. Seguidas vezes, aos domingos, ia visitá-lo na fazendinha. Ele não era daqueles políticos cheios de informações, que fazem a felicidade dos jornalistas. Dele fluíam sentimentos, assim como memórias permanentes. Fui tomando conhecimento, ao vivo, de centenas de episódios da vida dele, de seu governo e de seu calvário político.
Contou-me, por exemplo, que ainda governador de Minas, mas já pré-candidato à presidência da República, compareceu ao palácio do Catete para uma audiência com o então presidente Café Filho, adversário implacável de sua candidatura. O tema que ia tratar dizia respeito aos preços mínimos do café, que seu estado produzia aos montes. Lá em cima, primeiro a surpresa: Café Filho tratou-o com desmesurada gentileza, chegando a levantar-se da cadeira presidencial e pedindo que ele nela sentasse. Meio sem jeito, sentou, quando o presidente mudou de tom, tornou-se agressivo e disse: "Esta foi a primeira e a única vez que você ocupou essa cadeira. Você não será presidente, até porque os ministros militares não querem!"
Irritado, JK deu a audiência por terminada e desceu até a sala de imprensa. Os jornalistas não tinham a menor idéia do que se passara. Foram logo perguntando sobre o café, claro que não o presidente. Vingou-se: "De que café você está falando, meu filho, do vegetal ou do animal?"
Naquela noite a Hora do Brasil divulgou o manifesto dos ministros militares, contra sua candidatura. Reunido com amigos em seu apartamento, em Copacabana, aceitou a sugestão de Augusto Frederico Schmidt, telefonou para o "Correio da Manhã" e ditou sua reação, começando com a frase lapidar de que "Deus poupou-me o sentimento do medo".
Não é essa a oportunidade para referir o que foi o governo de Juscelino Kubitschek, muito menos para concordar com um certo sucessor dele, responsável pela falsa imagem de que a paciência era sua maior qualidade. Bobagem. Ele era a impaciência em pessoa, queria tudo pronto e resolvido o mais breve possível, como ainda há dias retificou sua filha Maristela.
Tão impaciente que mudou o Brasil.
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