sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

VIVALDICES E ESPERTEZAS

Por Hélio Schwartsman, da Folha.com
OK. O capitalismo triunfou. Pelo menos nas experiências históricas que temos, economias planificadas, com funcionários estáveis e com remuneração fixa, não funcionam porque, podendo fazê-lo sem ônus econômicos e sociais, a maioria de nós prefere não trabalhar (ou, sendo um pouco mais generoso para com a natureza humana, fazê-lo em doses homeopáticas) a empenhar-se com todas as forças na consecução de tarefas muitas vezes aborrecidas e sem apelo intelectual.
Um dos problemas do Brasil é que, embora operemos sob a égide de um sistema econômico baseado na livre concorrência, não resistimos à tentação de pegar uma carona na autoridade do Estado para colher os lucros do capitalismo sem a necessidade de correr riscos ou conquistar o mercado pela qualidade dos produtos oferecidos e dos serviços prestados.
Faço essas reflexões a propósito de uma série de espertezas privadas que, de tão acostumados que estamos a ser tungados e ludibriados, já não nos tiram do sério infelizmente.
A mais recente dessas vivaldices é o aumento na taxa da inspeção veicular ambiental que o prefeito de São Paulo, Gilbero Kassab (DEM), concedeu ao consórcio que realiza o serviço. Não me conto entre os defensores da poluição do ar. Acho que o poder público precisa mesmo regular a emissão de gases do transporte individual e é mais do que justo que cada proprietário de veículo pague pelas despesas daí decorrentes.
O que não me parece correto é que o reajuste ocorra sem que a ele corresponda um aumento de custos demonstrado. Trata-se, afinal, de uma concessão, uma atividade regulada pelo Estado cujo objetivo é a manutenção da qualidade do ar. Como o risco para a empresa que presta o serviço é mínimo (estamos todos obrigados por lei a nos submeter anualmente à inspeção), o lucro precisa ser pequeno: o suficiente para assegurar a viabilidade do negócio e remunerar o capital investido. Se assim não for, a inspeção deixa de ter o caráter público que a motivou e se torna um mecanismo de transferir renda da coletividade para firmas privadas. A coisa só fica mais suspeita quando se constata que algumas das empresas metidas no consórcio doaram dinheiro para o partido de Kassab na última campanha municipal.
Faço aqui um pequeno parêntese para acrescentar que, no capítulo qualidade do ar, a lista de pecados do poder público é bem maior. Como escrevi há pouco na versão impressa da Folha, é meio absurdo que a Petrobras, uma empresa que, por ser majoritariamente estatal, deveria colocar o interesse da sociedade à frente dos lucros, venha há anos procrastinando de modo até mesmo ilegal a introdução de combustíveis mais limpos no país. Outro ponto complicado é a política fiscal da maioria dos Estados que, ao contrário do que ocorre no mundo civilizado, não sobretaxa os veículos mais poluentes.
Voltando ao capitalismo à brasileira, o caso das inspeções está muito longe de ser o mais grave. Os pequenos golpes contra o bolso e a paciência do cidadão se sucedem em ritmo e variedade impressionantes. A troca das tomadas, por exemplo, foi, é preciso reconhecê-lo, uma jogada brilhante. Numa única canetada os fabricantes de plugues e adaptadores criaram "ex nihilo" todo um novo mercado. Mais interessante ainda, conseguiram um raro equilíbrio: a mudança causa um inconveniente que não é grande o suficiente para provocar mobilizações e protestos, mas basta para gerar lucros fabulosos.
No mesmo nível de genialidade eu só me lembro da iniciativa das autoridades de trânsito (as quais, aliás, operam um dos mais profícuos balcões de negócios do país) que alguns anos atrás obrigou todos os motoristas a adquirir e carregar para cima e para baixo um pedaço de gaze, um rolo de esparadrapo e um par de luvas de látex. Com isso, queriam nos fazer crer, estávamos prontos a atender a emergências médicas viárias.
Mais recentemente, esses mesmos impolutos administradores públicos impuseram a todos os compradores de carros a obrigação de pagar por um chip de localização e bloqueio, agora exigido em todos os veículos novos, mas que é totalmente inútil a menos que o proprietário seja cliente de uma seguradora. Até podemos discutir se faz ou não sentido exigir que todos os condutores tenham seguro total, como ocorre em vários países, mas, uma vez que isso não ocorre no Brasil, a nova regra constitui um enorme benefício às seguradoras difícil de justificar de um ponto de vista republicano.
Essa mania de tentar sequestrar a autoridade do Estado para gerar benefícios privados não é uma prática exclusiva de algumas grandes empresas e uns poucos administradores. Infelizmente, o buraco é mais embaixo. A ideia está profundamente enraizada em nossa cultura, afetando também indivíduos e categorias profissionais.
Os advogados, por exemplo, conseguiram criar dezenas de mecanismos legais que obrigam o cidadão a contratar seus serviços mesmo que não o desejem. É um contrassenso econômico e lógico. Se o sujeito não tem competência para fazer-se representar em juízo, tampouco a tem para nomear um causídico como seu "bastante procurador".
Os médicos vão agora no mesmo caminho com a chamada regulamentação do ato médico que, para desespero de dentistas, psicólogos, fisioterapeutas etc., está prestes a ser aprovada no Congresso. A peça cria uma série de procedimentos que passariam a ser exclusivos dos médicos. Foram com tanta sede ao pote que acabaram incorrendo em piada involuntária, ao tornar o sexo uma zona restrita. De acordo com o art. 4º, pár. 4º, III, do PL nº 7.703/06, "a invasão dos orifícios naturais do corpo" é prática exclusiva da classe.
Diga-se em favor dos médicos que não foram eles que criaram todas essas restrições. Eles só reproduziram dispositivos constantes das regulamentações profissionais das categorias que agora combatem com afinco esse projeto.
E a coisa é bem mais disseminada. O Brasil é uma espécie de país das corporações. Indivíduos e categorias profissionais, em vez de firmar-se pela excelência, preferem sempre tentar criar uma boquinha para tornar sua atividade exclusiva quando não obrigatória.
Como observei numa coluna recente, tramitam no Congresso Nacional dezenas e dezenas de projetos que regulamentam, entre outras, as profissões de modelo de passarela (PL 4983/09), designer de interiores (PL 4525/08), detetives (25 PLs diferentes), babás (PL 1385/07), escritores (PL 3034/92), demonstrador de mercadorias (PL 5451/09), cerimonialista (PL 5425/09), educador social (PL 5346/09), fotógrafo (PL 5187/09), depilador (PL 4771/09). Já resvalando no reino da fantasia, busca-se também regulamentar a ocupação de astrólogo (PL 6748/02) e terapeuta naturista (PL 2916/92).
O problema é que qualquer grupo que tenha um mínimo de organização obtém sucesso senão em todos os pleitos ao menos em parte deles. O resultado é uma miríade de leis e regulamentos que, afora atender às demandas corporativas, só servem para frustrar direitos e dificultar a vida.
Se vamos ser capitalistas, como nos impõem o momento histórico e quem sabe até a biologia, deveríamos pelo menos tentar jogar o jogo direito. O poder do Estado deve ser usado para garantir a ordem e proteger a coletividade, não para garantir benefícios privados.

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