quarta-feira, 27 de abril de 2011

DO FUNDO DA MEMÓRIA

Por Carlos Chagas
A Conspiração das Elites
De vez em quando é bom  mergulhar no passado, quando nada para  não  repetir erros, porque se não nos  diz o que fazer, o passado sempre nos dirá o que evitar.
Há mais de  quarenta anos vivia o Brasil uma situação de crise iminente. Depois da entusiástica reação  nacional ao golpe, em 1961,  liderada por Leonel Brizola, entramos em 1964 sob a égide da conflagração.  O então presidente João Goulart tivera assegurada sua posse e governava,   por força da resistência do cunhado,  governador do Rio Grande do Sul e  logo depois  o deputado federal mais votado da história do país, eleito pela Guanabara.     O problema estava na permanência ativa  das  forças que tentaram rasgar a Constituição e permaneciam no mesmo objetivo.  Uns pela  humilhação da derrota, outros  por interesse,  estes ingênuos, aqueles infensos a quaisquer reformas sociais – todos se vinham fortalecendo sob a perigosa tolerância de Goulart.  Conspirações germinavam em variados setores sob a batuta de um organismo central, o IPES, singelo Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais,  mas, na verdade, um  milionário centro de desestabilização do governo trabalhista,  erigido em cima de milhões de dólares.  Sua chefia era exercida pelo general Golbery do Couto e Silva, na reserva, arregimentando políticos, governadores, prefeitos, militares das três armas,  fazendeiros, empresários aos montes, classe média  e até operários e estudantes. O polvo tinha diversos tentáculos, como o CCC (Comando de Caça aos Comunistas), MAC (Movimento Anticomunista), CAMDE (Campanha da Mulher pelas Democracia), IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e outros, muito bem subsidiados,  que se encarregavam de agir nas ruas.
Claro que a maioria da imprensa dava ampla cobertura a essas  diversas  atividades, sempre escondidas sob a fantasia da defesa da democracia “ameaçada pelas reformas de base pretendidas pelo governo comunista de João Goulart”. Publicidade e dinheiro vivo era o que não faltava, além, é claro, das inclinações pessoais dos barões da mídia.
Do outro lado, organizavam-se as forças que imaginavam estar  o Brasil marchando  para o socialismo. O CGT (Comando Geral dos Trabalhadores), a Frente Nacionalista, o Grupo dos Onze, as Ligas Camponesas  e outros.
Depois da ridícula experiência parlamentarista o presidente retomara, através de um plebiscito, a plenitude de seus poderes. Diante da  resistência do Congresso em votar  as reformas, Jango decidiu promovê-las “na marra”. Abria perigosamente o leque, ao invés de realizá-las de per si, uma por uma. Ao mesmo tempo, pregava a reforma agrária, pela desapropriação de terras por títulos da dívida pública;  a reforma bancária, com a estatização do sistema financeiro;  a reforma educacional, com o fim do ensino privado;  a reforma urbana, através da proibição de os proprietários manterem casas e apartamentos fechados, sem alugar;  a reforma na saúde, pela criação de um laboratório estatal capaz de produzir remédios a preços baratos; a reforma da remessa de lucros, limitando o fluxo de dólares que as multinacionais enviavam às suas matrizes; a reforma das empresas, impondo a participação dos empregados no lucro  dos patrões e a co-gestão;  a reforma eleitoral, concedendo o direito de voto aos analfabetos, aos soldados  e cabos.  Entre outras.
Contava-se, como piada, haver um túnel secreto ligando as instalações do IPES à embaixada dos Estados Unidos, no Rio. Verdade ou mentira,  os americanos estavam enfiados até o pescoço  na conspiração,  por meio do embaixador Lincoln Gordon e do adido militar, coronel Wernon Walters, antigo oficial de ligação do Exército americano com  a Força Expedicionária Brasileira, na Itália.  Linguista exímio, sabendo falar até mesmo o português do Brasil e o de Portugal, em separado, tornara-se amigo dos majores e coronéis que lutaram na Itália,  agora  generais importantes. E em grande parte,  conspiradores.
A estratégia inicial  era   impedir as reformas de base  e deixar o governo Goulart exaurir-se, desmoralizado, até o final do mandato.   Tudo  mudou quando o presidente se deixou envolver por outra reforma, a militar. Partindo de um inexplicável  artigo da Constituição que limitava a possibilidade de os sargentos se candidatarem a postos eletivos, bem como das dificuldades antepostas pela Marinha para a organização sindical dos subalternos, tudo transbordou. Pregava-se a quebra da hierarquia entre os militares.  Acusada de estar criando um soviete,  a Associação dos Marinheiros e Fuzileiros rebelou-se, instalando-se na sede do sindicato dos Metalúrgicos. Mais de mil marinheiros e fuzileiros recusaram-se a voltar aos seus navios e quartéis, tendo o governo preferido a conciliação em vez da punição. A ironia estava em que o chefe da revolta, o cabo Anselmo, o  mais inflamado dos insurrectos, era um agente provocador a serviço do golpe. Quanto mais gasolina no fogo,  melhor.
Juntava-se a isso a decisão de Goulart de realizar monumentais comícios populares, onde assinaria, por decreto, as reformas negadas pelos  deputados e senadores.  Só fez um, a 13 de março, sexta-feira, no Rio, quando desapropriou terras ao longo das rodovias e ferrovias federais,  encampando também  as refinarias particulares de petróleo. Naquela noite, na Central do Brasil, e ironicamente diante do prédio do ministério da Guerra, discursaram revolucionáriamente os principais líderes  de esquerda: José Serra, presidente da União Nacional dos Estudantes, Dante Pelacani, dirigente  do CGT, Miguel Arraes, governador de Pernambuco, Leonel Brizola, deputado federal, e outros. Cada orador sentia  a necessidade de ir além do que pregara o antecessor. Quando chegou a vez do presidente Goulart, não lhe restou alternativa senão superar os companheiros.   Fez um discurso que os historiadores precisam resgatar. Uma espécie de grito de revolta diante das elites, a pregação da independência para os   humildes e os explorados. O desfecho estava próximo, demonstrando que,  do lado de cá do planeta,  enquanto a esquerda faz barulho, a direita age.  

Nenhum comentário: