domingo, 10 de abril de 2011

TIROS

Dorrit Harazim, no O Globo.
A gente achou que era brincadeira”, contou uma das crianças da Escola Municipal Tasso da Silveira, referindo-se à entrada na sala de aula do jovem matador que trazia uma arma em cada mão.
A frase diz mais sobre a paisagem urbana do Rio de Janeiro - e sobre as raízes da fuzilaria em Realengo - do que muita análise rococó proferida por adultos, especialistas multidisciplinares arregimentados no laço pela mídia.
Qual criança nascida no Leblon ou na Zona Oeste nunca viu passar uma viatura de polícia com sua rotineira penca de policiais surfando nas janelas, armas apontadas tout azimut? Qual brasileirinho da Baixada Fluminense ou da Zona Zul nunca cruzou com outro brasileirinho como ele, só que marginal, armado?
Assaltantes causam pânico em adultos com armas de brinquedo nas ruas cariocas. Por que crianças não haveriam de imaginar que revólveres apontados para eles na sala de aula eram de brincadeira? Ou, mais grave ainda, que eram de verdade mas o jovem atirador é que estava de brincadeira?
Parafraseando Hannah Arendt, é a banalidade das armas. Elas fazem parte do visual da violência cotidiana que já se incorporou à cidade.
Sem qualquer retórica, o pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (USP) Renato Alves desbastou o cipoal de teses acumuladas em cima das 13 mortes dessa sombria manhã de quinta-feira: “Desequilibrados toda sociedade tem. Mas desequilibrado com acesso fácil a uma arma de fogo [é o que] leva à letalidade grave. Mesmo um equilibrado com arma na mão é problema.”
O mapa-múndi está pontilhado de atentados não terroristas praticados por desequilibrados contra escolas. Dunblane, na Escócia, em 1966 (vítimas: 16 crianças entre 5 e 6 anos de idade), Gutenberg, na Alemanha, em 2002 (13 professores e 2 estudantes), Columbine, no estado do Colorado, em 1999 (12 adolescentes e 1 professor), para citar só alguns. Costumam ocorrer em cidades pequenas ou de médio porte, não em metrópoles como o Rio.
Todas essas fuzilarias também costumam ser seguidas de frenéticas investigações quanto a procedência, origem e legitimidade da arma ou arsenal usados.
Quando se trata de países como os Estados Unidos, onde o porte de armas individual consta da Declaração dos Direitos do Cidadão (Segunda Emenda da Bill of Rights de 1791, regulamentada de forma variada por cada estado), a questão sempre deságua num obsessivo choque de absolutos e interpretações jurídicas neurastênicas.
Numa investida recente da National Rifle Association (NRA) junto ao Congresso americano, por exemplo, o musculoso lobby insistiu para que mesmo suspeitos de terrorismo incluídos numa lista negra de passageiros não possam ter cerceado o direito de compra e porte de uma arma. Segundo dados levantados pelo “New York Times”, mais de 1.100 armas foram adquiridas legalmente por pessoas dessa lista ao longo dos últimos seis anos.
Em março do ano passado, pela primeira vez em mais de 200 anos, a Suprema Corte americana sinalizou cogitar transformar em lei federal o direito individual assegurado pela Segunda Emenda. O juiz Anthony M. Kennedy chegou a comparar o direito à posse de arma ao direito fundamental à liberdade de expressão.
Hoje, nos Estados Unidos, que festeja seus 300 milhões de habitantes, cerca de 200 milhões de armas estão legalmente em mãos de civis. E a ostentação desse direito se torna cada vez mais visível.
Em Antioch, Califórnia, por exemplo, os cruzados da Segunda Emenda chegam nos cafés Starbucks com suas pistolas penduradas na cintura. Sentam-se em meio a fregueses desarmados e proclamam que “um direito não exercido é um direito perdido”.
A Starbucks se defende da acusação de leniência. “Apenas respeitamos as leis federais, estaduais e municipais que tratam desse tema”, informa. Não é bem assim. Por se tratar de uma rede de estabelecimentos privados, a empresa poderia proibir a entrada de fregueses armados da mesma forma que pode não aceitar fregueses descalços.
Seja no faroeste da Costa Oeste, seja no quadro mais domesticado da Costa Leste, pelo menos um mesmo requisito da lei federal vigora nos 50 estados americanos: a proibição de posse de arma por parte de condenados pela Justiça e por doentes mentais, além do porte de armas em “locais sensíveis como escolas e prédios do governo”. Na cidade de Nova York, mais de 100 mil dos 1,1 milhão de alunos das escolas públicas passam diariamente por detectores de metais e um destacamento especial de cinco mil policiais patrulha as escolas municipais.
No Brasil, quinze requisitos para a compra de armas de fogo adornam o texto do Estatuto do Desarmamento de 2003. Mesmo assim, segundo levantamento realizado pelo Viva Rio, existem no país cerca de 14 milhões de unidades em mãos de civis, das quais 7,6 são armas ilegais que vão trocando de dono país afora.
Duas delas foram parar nas mãos de Wellington Menezes de Oliveira, de 23 anos: o revólver calibre 38 de numeração raspada e o calibre 32 pertencente a um homem já falecido. Com as duas fez os 66 disparos, restando-lhe 22 projéteis ao morrer.
Foram milhões os brasileiros que se emocionaram com as cenas de Realengo, e milhares os cariocas que se juntaram espontaneamente ao luto.
Quantos deles estavam entre os que votaram contra o artigo 35 do Estatuto do Desarmamento, em 2005? No referendo do 23 de outubro daquele ano, 64% de brasileiros votaram contra a proibição da comercialização de armas de fogo e munição em todo o território nacional.

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