terça-feira, 10 de janeiro de 2012

O CORAÇÃO DA CRISE

O mundo está saindo do buraco ou a crise toma fôlego para mergulhar no porão do abismo? Há números e argumentos para cada gosto. Até geograficamente a dualidade se oferece na contraposição entre uma economia americana menos anêmica e uma Europa que se desmancha sob a ação de solventes financeiros e políticos. George Soros adverte: a lixadeira do arrocho fiscal vai corroer o que sobrou em camadas de recessão e deflação de ativos. No Brasil, respeitados economistas já falam em um ciclo internacional de pelo menos dez anos: 'A Grande Depressão'.
Como os governos podem reagir ao infortúnio? Decifrar a dominância financeira que gerou a crise e impede a sua superação é o desafio encarado por um grupo de economistas da Unicamp (Ricardo de Medeiros Carneiro; Pedro Rossi; Marcos Vinicius Chiliatto-Leite; Guilherme Santos Mello). Eles se debruçaram sobre o coração do capitalismo nos dias que correm: o mercado de derivativos. Num paper para debate ('A quarta dimensão: os derivativos em um capitalismo com dominância financeira') o grupo radiografa a singularidade teórica dessa roleta e dimensiona o tamanho da encrenca: US$ 600 trilhões, dez vezes o PIB mundial; 35 vezes a massa de ações negociadas em bolsas.
1. A característica fundamental desse mercado é que ele não se funda na propriedade jurídica dos bens, mas através de uma teia de relações financeiras apropria-se dos direitos sobre o desempenho dos ativos.
2. Tudo se passa, de certo modo, como se as relações de propriedade lhe fossem indiferentes, desde que resguardadas as condições de desregulação das finanças, com a garantia da livre circulação de capitais.
3. Um traço da natureza parasitária e especulativa dessa etapa é a sua capacidade de inserir-se no processo de acumulação sem a necessidade de um investimento inicial no ambiente físico da economia. Salta-se a trindade da acumulação (D-M-D), mas também representa um passo além da financeirização originalmente expressa na forma D-D (valorização via jogo de ações, por exemplo).
4. Na medida em que deslocam seu foco da esfera patrimonial para a do rendimento que os ativos propiciam, os derivativos levam o processo de descolamento da economia real ao ápice.
5. Nos contratos de derivativos fundem-se o dinheiro e o juro intrínseco a cada etapa da operação capitalista, adicionando-se um ganho de velocidade e mobilidade que atende à busca permanente de proteção face às incertezas inerentes à propriedade e valorização da riqueza no mercado capitalista.
6. A fuga da incerteza está presente em toda a história do capital. Mas é somente quando o sistema financeiro se descola dos controles do Estado, graças a uma ordem política que delibera nesse sentido, a engrenagem se emancipa.
7. A partir de então, um véu de opacidade recobre os verdadeiros protagonistas das gigantescas operações de transferência de riqueza que o mercado de derivativos promove em ambientes assépticos, dentro de ternos finos, escritórios de luxo e telas de cristal líquido high tec. A acumulação do capital fictício ganha autonomia extrema, integrando riscos e mercados, reduzindo tudo a commodities, inclusive moedas nacionais flanqueadas a partir da submissão de governos aos mandamentos da desregulação financeira.
8. Um jornalismo especializado, rudimentar, de um modo geral no conteúdo, mas prestativo na abordagem, impermeabiliza tudo com uma camada de verniz naval de legitimidade e eficiência. Ao mesmo tempo desqualifica-se a crítica heterodoxa. Coube a esse jornalismo distinguir Celso Furtado, o maior economista brasileiro, com a alcunha de jurássico. Fecha-se um círculo de dominação e legitimação de um poder que os economistas da Unicamp denominam como a 'quarta dimensão' das relações capitalistas, sendo as anteriores as relações de subsistência; a extração da mais valia e o dinheiro a juros ou financeirização da riqueza patrimonial.
9. O lucro de cassino das operações com derivativos deriva de apostas sobre a variação de desempenho de um ativo que não se possui.
10. Mas os ganhos na roleta condicionam a formação dos preços a vista pelo seu volume descomunal e agressiva capacidade de interligar planetariamente diferentes mercados.
11. Na evolução do processo capitalista, o cálculo econômico é progressivamente condicionado, por exemplo, pelo exercício de direitos financeiros sobre o resultado de uma empresa. A supremacia das exigências de retorno (crescentes) impostas pelos acionistas, fundos e investidores de um modo geral transmite-se em cadeia para o pátio da fábrica e daí para as relações trabalhista, para os valores sociais e também para o meio ambiente. Cortes de custos; intensificação produtiva; maximização de resultados extrapolam quaisquer possibilidade de convívio sustentável entre humanos e entre eles e a natureza.
12. A dinâmica dos derivativos determina e condiciona o custo e a expansão do crédito; maximiza a especulação com títulos de seguro contra calotes de dívidas soberanas; influenciaa formação da taxa de câmbio pelo canal especulativo do carry trade (lucro com diferenciais de juros entre duas economias distintas); distorce as cotações de commodities, exacerbando tendências e volatilidade.
13. Tudo se torna perigosamente pró-cíclico, ao mesmo tempo em que as defesas do Estado recuam e a capacidade política e operacional de reação às crises definha.
14. O mercado de derivativos se sobrepõe aos demais na medida em que consegue se impor como uma esfera de poder e riqueza relativamente desconectada dos fundamentos e, não raro a contrapelo da economia real, que influencia e distorce, sem se dar ao trabalho de pisar no chão firme da fábrica ou assumir diretamente a aspereza da luta de classes. .
Sua hora da verdade fica por conta das crises. A crise põe em xeque a desregulação das finanças, a vulnerabilidade dos Estados, o crédito irresponsável e o endividamento temerário. É portanto uma crise dos próprios fundamentos da lógica hegemônica dos mercados derivativos que todavia subsistem como força política com músculos para disputar o passo seguinte da história. A ver.

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