Na falta de um verdadeiro confronto militar na tomada de Bagdá, o embate se deu sob forma simbólica, através da derrubada de uma estátua de Saddam. Um militar pendurou uma bandeira dos EUA na cabeça da estátua, logo substituída por uma bandeira iraquiana. Era uma tentativa de projetar um fundo histórico que engrandecesse aquela cena ridícula.
Flávio Aguiar, Carta Maior
Na manhã do dia 09/04/2003 eu estava sentado diante da televisão, em meu apartamento no bairro do Butantã, em São Paulo. Assistia ao vivo a entrada triunfal (à tarde lá, pela diferença de horário) das tropas norte-americanas em Bagdá. À noite, assisti as reportagens sobre o evento em vários canais de TV, nacionais e estrangeiros.
No dia seguinte, 10/04/2003, publiquei um artigo nesta Carta Maior (quando minha coluna ainda tinha o nome de “Cartas Ácidas”, pois eu substituía interinamente Bernardo Kucinski, convocado a colaborar com o Presidente Lula) chamado “A bandeira errada”, sobre a diferença entre o que eu vira à tarde e o que vira à noite.
O foco do título era uma atitude precipitada, descrita como “ato falho” de um militar norte-americano. Na falta de um verdadeiro confronto militar na tomada de Bagdá, o embate se deu sob forma simbólica, através da derrubada de uma estátua de Saddam Hussein, na praça Fildos. Um dos militares – que hoje sei se chamar o Cabo Edward Chin – pendurou uma bandeira norte-americana na cabeça da estátua. Ajudada pelo vento, ela se plantou em seu alvo de cabeça para baixo, o que, na linguagem internacional, é aviso de situação difícil e de pedido de socorro. A bandeira pertencia a outro militar – Tim Maclaughlin – que a levara com a esperança algo obsessiva de hasteá-la em algum lugar para compor uma cena histórica. Talvez o que o inspirasse fosse a famosa cena (montada e remontada algumas vezes) dos soldados soviéticos hasteando a bandeira vermelha no alto do Reichstag, em Berlim, no gesto que simbolizaria o fim da Segunda Guerra Mundial. Ou ainda a foto (também construída e reconstruída) dos soldados norte-americanos hasteando a bandeira de seu país em Iwo Jima.
A bandeira ficou naquele alvo pouco mais de um minuto. O suficiente para oficiais no local e até em Washington, que assistiam ao vivo a invasão, que nem eu, perceberem o “erro” que aquilo significava. A bandeira dos EUA foi retirada, e em seu lugar colocou-se uma do Iraque, na posição certa. Seguiu-se a derrubada da estátua, proeza feita por um buldozer do Exército norte-americano, puxando uma corda atada à sua cabeça.
O feito nada tivera de heróico, ao contrário, para quem o vira ao vivo soava e ainda soa como, sobretudo, ridículo. Mas o noticiário à noite apresentava a derrubada com ares épicos de uma guerra de libertação, no Ocidente; como uma invasão de conquista, no mundo árabe, como na Al Jazzeera. No primeiro, preferia-se a versão com a bandeira iraquiana na cabeça; no segundo, a imagem da bandeira norte-americana era incluída.
No primeiro, havia uma epopéia redentora de um povo; no segundo, uma manipulação grosseira de imagens, planejada desde o começo.
Pulemos 8 anos. Ao entardecer de 09/01/2011, navegando na internet a partir de meu apartamento em Berlim, deparei com interessante artigo do colunista de assuntos internacionais Marcos Guterman, do Estadão (publicado em 06/01). Nele o colunista reporta sob o título “A gênese de um factóide de guerra”, o conteúdo de outro artigo, desta vez do norte-americano Peter Maass, publicado no New Yorker (“The Toppling. How the media inflated a minor moment in a long war”).
Peter Maass estava lá, no dia 09/04/2003, em Bagdá, na praça Firdos. Talvez eu até o tenha visto, quem sabe? Fui até o seu artigo. De modo muito interessante, ele confirma a leitura do meu modesto “A bandeira errada”, mas acrescenta dados muito significativos. A tese principal de Maass é a de desmontar a argumentação, por exemplo, da Al Jazzeera, de que aquilo fora um factóide planejado e montado a priori pelas forças norte-americanas. Não: para ele, o que houve foi um suceder de fatos independentes um do outro. A obsessão do dono da bandeira; o impulso de fazer algo que desse significado a um ato, no fundo, decepcionante, para quem esperava um rude combate que glorificasse a “ação épica” de um exército “libertador”; a leitura do erro, in loco e à distância, que significara a cobertura da cabeça de Saddam com a bandeira norte-americana; sua substituição pela bandeira iraquiana. Para o repórter norte-americano, inclusive, a passagem pela praça Fildos foram inteiramente ocasional; o comandante da coluna blindada norte-americana procurava o Hotel Palestina, onde se concentrava a mídia internacional, e na busca de informações, já que não tinha um mapa detalhado daquele bairro em Bagdá, desembocara na praça onde estava a estátua. E tudo isso vem muito bem documentado e corroborado por entrevistas, testemunhos, etc.
Só que, ao fazer isso, Peter Maass torna explicitamente claro o papel da mídia ocidental, então 99% aderente, senão sua incitadora, à campanha invasora do Iraque, e à tese da posse, por Saddam Hussein, de armas de destruição em massa, tese que se comprovou fictícia e manipulada a partir da própria mídia e do governo Bush Filho. É discutível, mesmo lendo o artigo do New Yorker, que tudo tenha sido tão completamente fruto do acaso. Fica evidente que, no meio do tumulto, tanto na mídia como no escalão militar houve quem percebesse, no instante e a posteriori, o valor simbólico daquilo. Prova disso é o relato de alguns repórteres sobre como suas reportagens foram modificadas pelos editores, back home, para dar-lhe o realce épico que nossa mídia pró-ocidente no Brasil, provinciana e canhestramente ecoou.
Oito anos depois, o Estadão, mesmo inadvertidamente, dá o chapeau à Carta Maior. Mérito pessoal? Sim, guardo um, e com muita satisfação. O de ter assistido, ao vivo, aquelas transmissões, e ter podido, dessa forma, senão fazer um juízo preciso sobre os acontecimentos, detectar a exata medida sobre como as versões construídas depois eram deveras enganosas. Eram montadas para enganar, num crime jornalisticamente doloso, do lado do Ocidente.
Mas uma coisa é certa. Ainda me aferro à convicção de que o “ato falho” do cabo Edward Chin, hasteando a bandeira que o então soldado Maclaughlin levara, tinha em si a chave para o âmago do espetáculo, tenha sido ele planejado antes ou não: projetar um fundo histórico (advindo da Segunda Guerra, seja a soviética no Reichstag ou a norte-americana em Iwo Jima) que engrandecesse aquela cena ridícula.
Ou seja, para o olhar investigativo, a bandeira errada era a bandeira certa. Inclusive por estar de cabeça para baixo.
No dia seguinte, 10/04/2003, publiquei um artigo nesta Carta Maior (quando minha coluna ainda tinha o nome de “Cartas Ácidas”, pois eu substituía interinamente Bernardo Kucinski, convocado a colaborar com o Presidente Lula) chamado “A bandeira errada”, sobre a diferença entre o que eu vira à tarde e o que vira à noite.
O foco do título era uma atitude precipitada, descrita como “ato falho” de um militar norte-americano. Na falta de um verdadeiro confronto militar na tomada de Bagdá, o embate se deu sob forma simbólica, através da derrubada de uma estátua de Saddam Hussein, na praça Fildos. Um dos militares – que hoje sei se chamar o Cabo Edward Chin – pendurou uma bandeira norte-americana na cabeça da estátua. Ajudada pelo vento, ela se plantou em seu alvo de cabeça para baixo, o que, na linguagem internacional, é aviso de situação difícil e de pedido de socorro. A bandeira pertencia a outro militar – Tim Maclaughlin – que a levara com a esperança algo obsessiva de hasteá-la em algum lugar para compor uma cena histórica. Talvez o que o inspirasse fosse a famosa cena (montada e remontada algumas vezes) dos soldados soviéticos hasteando a bandeira vermelha no alto do Reichstag, em Berlim, no gesto que simbolizaria o fim da Segunda Guerra Mundial. Ou ainda a foto (também construída e reconstruída) dos soldados norte-americanos hasteando a bandeira de seu país em Iwo Jima.
A bandeira ficou naquele alvo pouco mais de um minuto. O suficiente para oficiais no local e até em Washington, que assistiam ao vivo a invasão, que nem eu, perceberem o “erro” que aquilo significava. A bandeira dos EUA foi retirada, e em seu lugar colocou-se uma do Iraque, na posição certa. Seguiu-se a derrubada da estátua, proeza feita por um buldozer do Exército norte-americano, puxando uma corda atada à sua cabeça.
O feito nada tivera de heróico, ao contrário, para quem o vira ao vivo soava e ainda soa como, sobretudo, ridículo. Mas o noticiário à noite apresentava a derrubada com ares épicos de uma guerra de libertação, no Ocidente; como uma invasão de conquista, no mundo árabe, como na Al Jazzeera. No primeiro, preferia-se a versão com a bandeira iraquiana na cabeça; no segundo, a imagem da bandeira norte-americana era incluída.
No primeiro, havia uma epopéia redentora de um povo; no segundo, uma manipulação grosseira de imagens, planejada desde o começo.
Pulemos 8 anos. Ao entardecer de 09/01/2011, navegando na internet a partir de meu apartamento em Berlim, deparei com interessante artigo do colunista de assuntos internacionais Marcos Guterman, do Estadão (publicado em 06/01). Nele o colunista reporta sob o título “A gênese de um factóide de guerra”, o conteúdo de outro artigo, desta vez do norte-americano Peter Maass, publicado no New Yorker (“The Toppling. How the media inflated a minor moment in a long war”).
Peter Maass estava lá, no dia 09/04/2003, em Bagdá, na praça Firdos. Talvez eu até o tenha visto, quem sabe? Fui até o seu artigo. De modo muito interessante, ele confirma a leitura do meu modesto “A bandeira errada”, mas acrescenta dados muito significativos. A tese principal de Maass é a de desmontar a argumentação, por exemplo, da Al Jazzeera, de que aquilo fora um factóide planejado e montado a priori pelas forças norte-americanas. Não: para ele, o que houve foi um suceder de fatos independentes um do outro. A obsessão do dono da bandeira; o impulso de fazer algo que desse significado a um ato, no fundo, decepcionante, para quem esperava um rude combate que glorificasse a “ação épica” de um exército “libertador”; a leitura do erro, in loco e à distância, que significara a cobertura da cabeça de Saddam com a bandeira norte-americana; sua substituição pela bandeira iraquiana. Para o repórter norte-americano, inclusive, a passagem pela praça Fildos foram inteiramente ocasional; o comandante da coluna blindada norte-americana procurava o Hotel Palestina, onde se concentrava a mídia internacional, e na busca de informações, já que não tinha um mapa detalhado daquele bairro em Bagdá, desembocara na praça onde estava a estátua. E tudo isso vem muito bem documentado e corroborado por entrevistas, testemunhos, etc.
Só que, ao fazer isso, Peter Maass torna explicitamente claro o papel da mídia ocidental, então 99% aderente, senão sua incitadora, à campanha invasora do Iraque, e à tese da posse, por Saddam Hussein, de armas de destruição em massa, tese que se comprovou fictícia e manipulada a partir da própria mídia e do governo Bush Filho. É discutível, mesmo lendo o artigo do New Yorker, que tudo tenha sido tão completamente fruto do acaso. Fica evidente que, no meio do tumulto, tanto na mídia como no escalão militar houve quem percebesse, no instante e a posteriori, o valor simbólico daquilo. Prova disso é o relato de alguns repórteres sobre como suas reportagens foram modificadas pelos editores, back home, para dar-lhe o realce épico que nossa mídia pró-ocidente no Brasil, provinciana e canhestramente ecoou.
Oito anos depois, o Estadão, mesmo inadvertidamente, dá o chapeau à Carta Maior. Mérito pessoal? Sim, guardo um, e com muita satisfação. O de ter assistido, ao vivo, aquelas transmissões, e ter podido, dessa forma, senão fazer um juízo preciso sobre os acontecimentos, detectar a exata medida sobre como as versões construídas depois eram deveras enganosas. Eram montadas para enganar, num crime jornalisticamente doloso, do lado do Ocidente.
Mas uma coisa é certa. Ainda me aferro à convicção de que o “ato falho” do cabo Edward Chin, hasteando a bandeira que o então soldado Maclaughlin levara, tinha em si a chave para o âmago do espetáculo, tenha sido ele planejado antes ou não: projetar um fundo histórico (advindo da Segunda Guerra, seja a soviética no Reichstag ou a norte-americana em Iwo Jima) que engrandecesse aquela cena ridícula.
Ou seja, para o olhar investigativo, a bandeira errada era a bandeira certa. Inclusive por estar de cabeça para baixo.
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