Por Hélio Schwartsman, Folha.com
Encerra-se esta semana mais uma campanha eleitoral. Parece-me oportuno, portanto, fazer um comentário sobre a mentira. Como sempre ocorre nessas ocasiões, os candidatos recorreram a vários tipos de engodo. É preciso, contudo, evitar abordagens excessivamente moralistas da questão. Dilma, Serra e os demais postulantes empulham porque é da natureza humana fazê-lo. A mentira está praticamente inscrita em nosso DNA. O que nós cidadãos precisamos fazer é estabelecer a linha a partir da qual a manipulação da, vá lá, verdade deixa de ser uma característica inevitavelmente humana e torna-se motivo para não votarmos no candidato. Esse limite, é claro, varia de eleitor para eleitor, de acordo com sua estratégia de voto, preferências e do peso que atribui a cada um dos valores que o ajudam a definir seu sufrágio.
Um bom resumo do atual estágio das pesquisas sobre a mentira está em "The Liar in Your Life" (o mentiroso em sua vida), do psicólogo Robert Feldman. Como eu tentei fazer no parágrafo acima, o autor começa a obra desmistificando a mentira. Traz informações impressionantes.
Alguns estudos sugerem que bebês de apenas seis meses já simulam choro e gargalhadas para atrair a atenção dos pais. Entre os três e o sete anos, crianças já têm condições de concorrer a um cargo público: submetidas a experimentos em que se comprometem a não espiar à sorrelfa um objeto que precisam identificar, desobedecerão à regra em 82% das ocasiões. Pior, mentirão sobre isso até 95% das vezes.
O otimista poderá imaginar que, com uma mãozinha da religião e da sociedade, as coisas melhoram com o tempo. Otimistas estão na maioria das vezes errados: pesquisa feita pelo próprio Feldman mostrou que, no curso de uma conversação de meros dez minutos em que dois adultos se apresentam, eles mentem uma média de três vezes cada, podendo chegar a 12 nos casos mais extravagantes.
Tomemos um exemplo de campanha: falsificação de currículo. Uma empresa de recursos humanos de Wisconsin divulga bienalmente seu índice do mentiroso, isto é, a proporção de CVs fraudulentos que recebe para cargos de altíssima qualificação, como CEOs de grandes empresas. Em 2008, a taxa foi de 16%. Em 2000, registrou-se o pico de 23,3%. Se formos um pouco mais rigorosos e considerarmos como engodo também os exageros e não apenas títulos e honrarias totalmente inventados, o índice chega a 66%.
E a coisa pode ser ainda pior. Num de seus experimentos, Feldman demonstrou uma correlação positiva entre a capacidade de adolescentes de mentir de forma convincente e a sua popularidade na escola. De jovens populares a políticos é só um pulinho. No futuro talvez possamos substituir as caríssimas eleições pelos mais baratos e divertidos concursos de mentira. Torna-se presidente o candidato que convencer o júri de que nunca na vida mentiu.
Se você já está desistindo dos políticos e da própria raça humana, lembre-se de que não estamos sós. Do camaleão às pintas dos leopardos, a própria natureza recende a engodo. Alguns cientistas propõem que a mentira com vistas a obter posições sociais mais elevadas, muito mais do que a criação de ferramentas ou o cozimento da comida, foi a grande força a moldar a evolução humana. É a famosa hipótese da inteligência maquiavélica, defendida, entre outros, pelo primatologista Frans de Waal.
O importante aqui, contudo, não é determinar o que a mentira pôde fazer por nós, mas sim se ainda vale a pena buscar a honestidade. Como explica Feldman, existem vários tipos de inverdade. Há, para começar, as mentirinhas inocentes, como elogiar a comida da anfitriã mesmo quando ela é intragável ou dizer para a sua mulher que ela não engordou nadinha ao longo da última década. Essas são falsidades socialmente necessárias. Tato e mentira são muitas vezes palavras sinônimas.
Num grau um pouco acima, estão as mentiras de autopromoção, pelas quais tentamos nos vender para os outros e para nós mesmos sob uma luz mais favorável. Lidamos aqui nas fronteiras entre a edição e a farsa. É nessa franja que os políticos atuam. Eles mais do que ninguém querem ser bem vistos por todos. Só depois é que vêm contos do vigário com intenção fraudulenta. Essa última modalidade, embora mais rara, é a que roubou a cena. Quando falamos em mentira, é quase sempre este caso mais extremo que nos vem à mente.
E o problema basicamente é que essas fronteiras, que já não são exatamente nítidas para quem observa de fora, ficam inteiramente borradas quando somos parte do processo, seja como emissores seja como receptores da inverdade.
Como isso ocorre? De acordo com Feldman a causa primeira do embaralhamento é aquilo que ele chama Vantagem do Mentiroso, que reside basicamente em constatar que, por uma série de mecanismos neurológicos, mentir é muitas vezes vantajoso.
Destaco aqui dois desses mecanismos. O primeiro é o bom e velho autoengano. Ele faz com que o cérebro, para pacificar contradições percebidas (as chamadas dissonâncias cognitivas), reelabore a questão, conferindo pesos diferenciados aos termos. Assim, quando eu venço no pôquer, convenço-me de que sou um jogado exímio; quando perco, é porque tive muito azar.
No fundo, todo mundo quer acreditar nos falsos cumprimentos que recebe. Na verdade, uma parte do cérebro acredita, e isso gera reações químicas que provocam prazer. Mesmo o mais desafinado dos mortais se sente bem quando é elogiado por seu hipócrita professor de música. Em muitas das situações, somos cúmplices voluntários da mentira que nos contam, pois estamos sedentos para crer nela. (Deus e a religião, evidentemente, encontram-se nessa categoria).
O autoengano é fundamental para a sobrevivência. Cientistas que estudam a depressão descobriram que pessoas clinicamente deprimidas fazem uma avaliação surpreendentemente realistas de si mesmas. O fenômeno até foi batizado de realismo depressivo. Não se sabe ainda se é a depressão que leva à percepção mais acurada ou se é a visão mais realista que provoca os pensamentos deprimentes. De qualquer modo, o excesso de realismo não é lá muito saudável.
O segundo mecanismo é o viés de verdade. Por razões evolutivas, o padrão de nossos cérebros é aceitar como verdadeiras todas as declarações que nos chegam à cachola. Na maioria das vezes, elas são mesmo (ou a linguagem não faria muito sentido e jamais teria se desenvolvido), e o custo de duvidar de tudo o que nos chega aos ouvidos seria demasiado alto. Paranoia é um termo leve para descrever o indivíduo que desconfia até do bom dia que lhe damos.
Se misturarmos autoengano, viés de verdade e outras birutices de nosso cérebro, como o efeito maria vai com as outras e o respeito à autoridade, encontramos terreno mais do que fértil para a mentira, tanto as pequenas como as graúdas. Políticos, até um bocadinho mais que o comum dos mortais, exploram esses recônditos da natureza humana.
O que importa do ponto de vista do eleitor é, sem cair no udenismo fácil, diferenciar as inverdades politicamente relevantes das simples bobagens de campanha. É claro que falar é mais fácil do que fazer. OK, admitamos que currículos falsos fazem parte do jogo. Deixemos de lado, também, a matemática criativa, que torna o Orçamento flexível o bastante para atender a todos os pleitos. Nesse contexto, desconsidere, ainda, que os dois candidatos que foram para o segundo turno se intitulam economistas. Mas será que agnósticos se prostrando e comungando também são uma mentirinha inocente? E quanto a trair posições de uma vida inteira? Como eu disse no início, as respostas a essas perguntas dependem da visão de mundo de cada eleitor. Não deveria fazê-lo, mas lembro que, ao contrário do que dizem o TSE e a cartilha do politicamente correto, anular ou voto ou simplesmente fugir da urna (a multa, se não me engano, é de R$ 3,00) são opções legítimas para quem se sente sem opções.
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