quinta-feira, 9 de junho de 2011

O MITO DA IMPARCIALIDADE


Jornalistas e alienígenas.

Por Mário Bentes, do Observatório da Imprensa.
Lá se vão quase 50 anos desde que o roteirista Stan Lee, patricarca da Marvel Comics, criou o personagem Uatu, o Vigia, em parceria com o colega Jack Kirby. Uatu, que apareceu pela primeira vez em uma das estórias do Quarteto Fantástico, em 1963, pertencia a uma raça de alienígenas cuja única missão em vida era observar os acontecimentos dos planetas e de seus habitantes em todo o Universo. O alien em questão, que vivia literalmente no mundo da Lua, ficou com a missão de observar o nosso planetinha azul. E um detalhe importante: Uatu e seus colegas alienígenas deveriam apenas observar, sem jamais interferir nos acontecimentos.
Recordo este personagem forjado do meio da cultura pop dos EUA como a analogia mais que perfeita para ilustrar aquilo que acreditam ser alguns jornalistas: seres dotados da capacidade de observar os acontecimentos sem interferir ou se deixar influenciar. No meio jornalístico, tal característica alienígena ficou chamada de imparcialidade e, mais interessante ainda, virou fator fundamental para quem se diz ser um bom profissional. O tema, apesar de cansado, batido e tão antigo quanto Stan Lee e seus personagens, sempre volta, de alguma forma, ao centro do debate entre jornalistas (e não jornalistas). E assim foi no dia 11 de maio, quando participei de uma atividade com alunos de Jornalismo da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
Na ocasião, a convite da jornalista e professora Mirna Feitoza, compareci à atividade inerente à sua disciplina – Tópicos Especiais em Jornalismo –, chamada “Convergências Jornalísticas”, cujo objetivo era debater, sobre pontos de vistas diferenciados, um mesmo assunto: a convergência dos meios a partir das tecnologias em comunicação. Além de mim, jornalista e blogueiro, participou o empresário Dissica Calderaro, diretor-presidente da Rede Calderaro de Comunicação (RCC) – grupo de mídia do qual faz parte a TV A Crítica, afiliada da Rede Record em Manaus.
Causas e consequências.
Após cada um de nós falar sobre seus pontos de vista sobre o tema – o empresário, citando as ferramentas high-tech-web-social-media usadas pela emissora, entre elas um helicóptero; eu, tentando dizer que convergência também deveria abranger o espectador, e não apenas as empresas de comunicação –, a jornalista Mirna Feitoza, como é de praxe em todos os eventos do tipo, abriu para perguntas e o tradicional debate. Não lembro exatamente como acabamos por pairar sobre o tema imparcialidade, mas o fato é que o debate foi, no mínimo, interessante.
Enquanto o empresário Dissica Calderado, contrariando toda a História da Comunicação e dos nem tão recentes acontecimentos políticos-partidários-midiáticos locais, defendeu que a imparcialidade existia, sim, eu, de minha parte, disse exatamente o contrário. Dizia o empresário que o jornalista deve saber separar o que é fato, notícia, do que é opinião. E citou alguns exemplos, entre as próprias matérias da capa daquele dia do jornal A Crítica, pertencente ao grupo. De minha parte, comecei minha defesa por questionar o conceito de fato. Recordo ter argumentado que era características dos jornalistas o imediatismo e a quase constante separação de acontecimentos de seus contextos mais amplos e que, teimosamente, chamam isso de fato. Ou de notícia.
Em outras palavras, disse que nada – absolutamente nada – do que acontece no mundo se trata de um fato isolado. Taxar desse modo a dinâmica da própria História em andamento, na minha avaliação, é fazer de conta que não há causas e consequências relacionadas, assim como outros tantos, variados e imprevisíveis fatores. Arrisco a comparar isso com o que diz a Teoria do Caos, que tenta explicar o funcionamento de sistemas complexos e dinâmicos: “O bater de asas de uma borboleta em Tóquio pode provocar um furacão em Nova York.” Para ver o que seria isso na prática, mesmo que em contexto ficcional, o filme Efeito Borboleta, de 2004, é interessante.
Mera convenção técnica.
Outra coluna argumentativa que usei é que, além da impossibilidade de se “recortar” um acontecimento (notícia) de seu contexto maior (a linha do tempo; História em andamento) sem comprometer parte de sua compreensão – que os jornais e jornalistas fazem todo dia –, há ainda outro fator, porém não tão externo: o próprio jornalista. É sabido que o ser humano, ao longo das várias etapas de sua formação pessoal, é submetido a uma série de experiências que, juntas, moldam e determinam de maneira objetiva o seu modo de enxergar o mundo. Como tais experiências são pessoais e intransferíveis, é possível dizer que a maneira como cada ser humano (o que inclui os jornalistas) enxerga o mundo é única.
Em outras palavras: nem todos analisam um mesmo acontecimento sempre sob o mesmo prisma. Enquanto uns o avaliam e o apreendem a partir de uma visão econômica e política, outros podem fazer o mesmo, porém sob o olhar cultural e social. Ou tudo junto. Ou por nenhuma destas. Ou seja, cada um verá um fato diferente, e seu recorte do contexto será variável. É mais ou menos por isso que lemos coisas como “Caminhada católica atrai um milhão de fiéis às ruas” e “Evento evangélico atrapalha a rotina do trânsito” (exemplos livremente adaptados de matérias reais).
Quando defendo que não existe imparcialidade, diante do exposto, não defendo, porém, a falta de ética na profissão. Pelo contrário: reconhecer a existência de tantos mecanismos em nossa mente capazes de nos darem leituras variadas dos acontecimentos é a única defesa que temos – nós, os jornalistas – para buscar o mínimo de equilíbrio na apuração e redação de reportagens. Ignorar a existência de tais mecanismos, inerentes à nossa própria natureza, e nos fecharmos no mantra da ilusória imparcialidade, é dar vez ao tendencionismo e à miopia jornalística. Não à toa, a regrinha do “ouvir o outro lado” acaba mais sendo mera convenção técnica que necessariamente coisa de jornalista imparcial ou ético. Do que adianta ouvir o outro lado se o discurso está pronto no lead?
Interferência no curso da História.
O saldo disso tudo, em minha avaliação pessoal e intransferível, é que imparcialidade – ou seja, apenas observar sem interferir ou se deixar influenciar – está mais para Uatu e seus amigos alienígenas que para jornalistas e seus amigos seres humanos. Não estou chamando Dissica Calderado de alienígena, evidentemente. Longe de mim. Estou dizendo que se ele realmente acredita em imparcialidade, de verdade, ainda mais sendo proprietário de um grupo de comunicação (e com seus interesses, o que é inegável), é porque vive no mundo da Lua, tal como Uatu, o Vigia.
Em tempo: no universo ficcional da Marvel Comics, o alienígena Uatu já interferiu, por várias vezes, no curso da História terrestre, quando achou que era necessário ou mesmo por ter se deixado influenciar pelo que via. Se Uatu, o Vigia, de uma raça alienígena imortal e super-poderosa, não se comporta como deveria nem na fantasia, como vamos cobrar o mesmo de reles jornalistas mortais, na realidade?

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