O Globo se perde entre o céu e o inferno de São Conrado.
O jornal da família Marinho superou-se em sua edição de 22 de agosto ao dedicar em uma mesma edição um caderno para enaltecer a ótima qualidade de vida no bairro nobre de São Conrado e outro caderno para denunciar a “guerra do tráfico” e a insegurança no mesmíssimo bairro. A matéria do jornal especial sobre São Conrado começa indagando “o que leva alguém a escolher o bairro para viver”. Publicada no mesmo, dia a matéria sobre a “guerra no Rio” deixa essa pergunta sem resposta.
Maurício Thuswohl
Não é novidade para ninguém que a concreta perspectiva de uma terceira derrota consecutiva nas eleições presidenciais tem deixado alguns dos principais veículos de nossa mídia conservadora um tanto à deriva. Têm sido muitos os textos truncados e as manchetes tendenciosas aqui e acolá, nos mais respeitáveis diários de Norte a Sul do Brasil, mas o jornal carioca O Globo conseguiu se destacar de forma inusitada em sua edição de 22 de agosto. O jornal da família Marinho dedicou em uma mesma edição um caderno para enaltecer a ótima qualidade de vida no bairro nobre de São Conrado e outro caderno para denunciar a “guerra do tráfico” e a insegurança no mesmíssimo bairro.
É claro que a publicação dos dois cadernos no mesmo dia decorreu de uma falta de atenção, já que a matéria enaltecendo São Conrado foi publicada no caderno de bairros, que é fechado com alguma antecedência. Ninguém lá na Rua Irineu Marinho poderia adivinhar que, na véspera, aconteceria no mesmo bairro um confronto em plena luz do dia entre policiais militares e bandidos fortemente armados da quadrilha do traficante Antônio Bonfim Lopes, o Nem da Rocinha.
Mas, de toda forma, o cochilo dos editores de O Globo serviu para revelar a contradição entre o discurso “pra cima” decorrente do entusiasmo dos mais endinheirados com a realização da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016 (acompanhado da previsível especulação imobiliária) e a realidade de uma cidade que, sucesso das UPPs à parte, ainda convive com sérios problemas de segurança pública.
Intitulada “Aqui Ninguém Fica Sozinho”, a matéria especial sobre São Conrado traz depoimentos de moradores sobre o bairro: afirma Leopoldo Antunes Maciel, morador do bairro há 30 anos.
“A vantagem de São Conrado é que não dá para construir novos prédios. Então, os moradores se mantêm os mesmos há muito tempo. Isso gera uma sensação de segurança porque, onde quer que você vá, encontrará alguém conhecido”,
A “sensação de segurança” do senhor Leopoldo provavelmente sofreu um forte abalo quando o “alguém conhecido” que cruzou o caminho dos moradores e trabalhadores de São Conrado foi o traficante Nem, acompanhado de um “bonde” composto, segundo a própria Polícia Militar, por cerca de 60 bandidos
armados com fuzis, pistolas, granadas e metralhadoras. O confronto com os policiais foi seguido da invasão do Hotel Intercontinental (uma das diárias mais caras do Rio) por uma parte dos traficantes, com a tomada de 35 reféns e momentos de terror e angústia antes que os bandidos finalmente se rendessem.
A matéria do caderno de bairros elogia o calçadão da praia de São Conrado, local onde dezenas de traficantes correndo foram filmados das janelas dos prédios, e afirma que “entre caminhadas e corridas, vira e mexe se esbarra em um amigo”. Para confirmar essa máxima, depoimentos de moradoras ilustres como Sônia Simonsen, Cláudia Capanema, Tereza de Barros e Regina Blouler. O esbarrão entre a PM e o bando de Nem da Rocinha, no entanto, foi muito dolorido, como atesta a manchete “violência à janela e desespero dentro de casa”, no mesmo dia e no mesmo jornal. Os depoimentos, assustados desta vez, cabem a moradores célebres como as atrizes Taís Araújo e Thaila Ayala e a cantora Preta Gil, entre outros: “Foi um terror. Que angústia, meu Deus!”, tuitou Preta.
“Juntos na orla”
Com o irônico título “Na orla, juntos, políticos, PMs e esportistas”, uma outra matéria do caderno especial sobre São Conrado publicada em 22 de agosto traz um elogio feito pelo instrutor de vôo-livre Paulo Falcão à polícia do bairro: “Os policiais do 23º Batalhão da PM que patrulham o bairro também são conhecidos”, diz. As investigações internas da polícia, no entanto, já demonstraram que os “policiais conhecidos” desta vez pisaram na bola com os moradores de São Conrado ao abordarem o traficante e seu bando, sem o conhecimento do comando do batalhão, no início de uma movimentada manhã de sábado, o que colocou em risco dezenas de vidas inocentes, inclusive crianças pequenas.
Sem entrar no mérito da motivação dos policiais - já houve quem dissesse que a intenção inicial era achacar o traficante em R$ 60 mil para depois liberá-lo - o “incidente” de São Conrado serviu para retirar o véu de ilusão da “Cidade Maravilhosa versão 2014 e 2016” que autoridades e grandes empresários - inclusive os donos de O Globo - procuram passar de forma massiva à sociedade: “O que aconteceu em São Conrado acontece com mais ou menos freqüência em outros pontos da cidade. Só que, quando acontece em um bairro como São Conrado, tem uma repercussão diferente. As pessoas que se espantam pelo fato de ter que conviver com tiroteios e, com razão, estão se preocupando, deveriam lembrar que isso acontece corriqueiramente em outros bairros e ninguém se espanta”, lembra o sociólogo e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Ignacio Cano, especialista em segurança pública.
Separada por apenas algumas páginas da cidade sonhada que é descrita no jornal de bairro, a cobertura do confronto da semana passada lembra aos leitores de O Globo os diversos conflitos que aconteceram em São Conrado nos últimos anos. A lista começa em 2004, com a tentativa de invasão da Rocinha pelo bando do traficante Eduíno Eustáquio de Araújo, o Dudu, na qual morreram nove pessoas, continua com “um intenso tiroteio que transformou um trecho da Auto-Estrada Lagoa-Barra em praça de guerra” e termina com o mais recente confronto contra Nem. A matéria do jornal especial sobre São Conrado começa indagando “o que leva alguém a escolher o bairro para viver”. Publicada no mesmo, dia a matéria sobre a “guerra no Rio” deixa essa pergunta sem resposta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário