Nenhuma mediação pode servir de subterfúgio para um novo Iraque ou Afeganistão. As rédeas da negociação – já que o cavalo, ao que tudo indica, parece estar sendo encilhado pelos EUA - devem ser tomadas, urgentemente, pelas Nações Unidas, a fim de se pedir o cessar-fogo imediato na Líbia.
Marcelo da Silva Duarte
“(...) Logo adiante dos portões do sul do acampamento, havia antes várias casas de concreto de um só piso. Quando atravessamos a lamacenta entrada de Chatila, descobrimos que essas construções haviam sido todas dinamitadas até o chão. Havia caixas de balas por toda a rua principal, e nuvens de moscas enxameavam o lixo. Numa alameda à direita, a não mais de 50 metros da entrada, jazia uma pilha de cadáveres.
Dezenas deles, jovens cujos braços e pernas se enredavam na agonia da morte. Todos haviam sido fuzilados à queima-roupa na face esquerda, a bala rasgando uma linha de carne até a orelha e entrando no crânio. Alguns tinham vívidas feridas roxas que desciam pelo lado esquerdo da garganta. Um fora castrado. Todos tinham os olhos arregalados, e as moscas já tinham começado a se juntar. Os mais novos tinham talvez apenas 12 ou 13 anos (...)”
“Foram os Cristãos”: Massacre no acampamento de refugiados de Chatila.Robert Fisk, The Times, 20 de setembro de 1982. (O grande livro do jornalismo. Editado por Jon E. Lewis. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de janeiro, José Oympio, 2008)
Aumenta entre analistas e dirigentes políticos a expectativa de uma intervenção internacional na Líbia de Muamar Khadafi.
As recentes e acertadas resoluções do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), aprovando sanções à Líbia – proibição da venda de armas ao país africano, congelamento dos bens de Khadafi e aliados no exterior e abertura de investigação, no Tribunal Penal Internacional, sobre as denúncias da oposição contra o líder líbio por crimes contra a humanidade -, parecem ter acendido o sinal de alerta para lideranças latinas.
Para o presidente venezuelano Hugo Chávez, que teme uma intervenção armada estadunidense à Líbia, há falta de disposição do ocidente para o diálogo com o país africano. Os EUA, segundo Chávez, estariam de olho no petróleo líbio e, ratificando as recentes declarações públicas do ditador africano, distorcendo e exagerando, propositadamente, o que verdadeiramente se passa no país. O presidente latino-americano defende a solução negociada para o conflito e informou que pretende conversar sobre essa proposta com países da Europa e com os membros da Aliança Bolivariana para os Povos da América (ALBA), integrada pela Venezuela, Cuba, Bolívia, Nicarágua, República Dominica, Equador, Antigua e Barbuda e São Vicente e Granadinas.
No dia 28 de fevereiro, em Genebra, na Suiça, durante reunião extraordinária no Conselho de Direitos Humanos da ONU, o representante cubano, Rodolfo Reyes, afirmou que o governo de seu país defende a necessidade de se respeitar a soberania líbia. Segundo Reys, os EUA estariam incitando a violência, a agressão militar e a interferência estrangeira na Líbia; “Esperamos que o povo líbio conquiste um Estado precoce pacífico e soberano criado, sem qualquer ingerência estrangeira ou de intervenção, para assegurar a integridade da nação da Líbia”, teria comentado o conselheiro ao Granma, jornal oficial cubano, segundo informações da Rede Brasil Atual. Cuba, ainda segundo Reys - que afirmou ter sido informado de planos para uma intervenção militar humanitária no país africano -, rejeita categoricamente qualquer proposta de intervenção internacional na Líbia.
Já a representante brasileira na reunião do Conselho, ministra da Secretaria dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, criticou a seletividade com a qual, historicamente, a ONU trata questões de direitos humanos e a predominância de interesses políticos nas diligências sobre as violações dos direitos fundamentais conduzidas pela Organização, mas observou, em claro recado à diplomacia líbia, que “nenhum governo se sustentará pela força e pela violência” e que “nenhum povo suportará, em silêncio, a violação de seus direitos fundamentais”. Ainda segundo a ministra, dessa feita em claro recado à comunidade internacional e a excessos que porventura possam ser cometidos em seu nome, “o Brasil entende que posições econômicas e sociais não devem servir de pretexto para a violação dos direitos humanos. Todavia, a violação desses direitos tampouco pode ser um pretexto para ações unilaterais, sem o respaldo da comunidade internacional”.
Como se não bastassem os rumores diplomáticos, lideranças líbias contrárias a Muamar Khadafi se disseram, terça-feira (1°), tentadas a pedir ataques aéreos contra as forças governistas. Tais lideranças também teriam afirmado à imprensa estadunidense que estão perdendo as esperanças de que um levante popular seja capaz de derrubar o ditador líbio, donde a necessidade de se atacar, sob a bandeira da ONU, “alvos estratégicos”. Para Abdel-Hafidh Ghoga, porta-voz da coalização civil que dirige Benghazi, segunda maior cidade líbia, se tal ação ocorresse sob a bandeira das Nações Unidas, não estaríamos diante de “uma intervenção estrangeira”.
Noves fora a não poucas vezes justificada obsessão chavista por ardis estadunidenses – não obstante parecer não ter limites o empenho da Casa Branca a fim de corroborar tais teorias conspiratórias, como bem demonstrou a família Bush, o levante líbio parece ter pouco a ver, pelo menos por enquanto, já que estamos falando da administração de uma região estratégica do ponto de vista geopolítico, com artimanhas diplomáticas estadunidenses na região – e a falta de memória do representante cubano no Conselho de Direitos Humanos da ONU - que parece ter esquecido a interferência cubana e soviética, na última década de 60, na autodeterminação de países latino-americanos -, parece inevitável, para o bem ou para o mal, a mediação internacional no conflito que opõe rebeldes e o governo líbio de Muamar Khadafi, seja para negociar seu afastamento, caso se trate da vontade popular, seja para se evitar o provável banho de sangue que advirá, pela via da repressão oficial – para quem não sabe, a Líbia não tem Constituição, sendo governada por ideias esparsas anotadas por Khadafi numa espécie de diário político; uma dessas ideias prevê a execução sumária em caso de “traição” à pátria, eufemismo para “L'État c'est moi” -, após uma possível rendição dos rebeldes.
A história é pródiga em exemplos de levantes populares e oposicionistas, étnicos ou políticos, sufocados e, posteriormente, duramente perseguidos e reprimidos. Que o digam os refugiados palestinos no campo de Chatila, no Líbano, e os xiitas iraquianos de Dujail.
Nenhuma mediação, porém - ou mesmo uma medida extrema como a intervenção -, pode servir de subterfúgio para um novo Iraque ou Afeganistão. As rédeas da negociação – já que o cavalo, ao que tudo indica, parece estar sendo encilhado pelos EUA - devem ser tomadas, urgentemente, pelas Nações Unidas, a fim de se pedir o cessar-fogo imediato na Líbia e a abertura do diálogo entre rebeldes e governistas. Do contrário, mais uma vez restará desmoralizada a comunidade internacional.
Pois todo sangue, depois de derramado, não tem religião, raça ou preferência política, e muito menos é capaz de dialogar. É só sangue.
Dezenas deles, jovens cujos braços e pernas se enredavam na agonia da morte. Todos haviam sido fuzilados à queima-roupa na face esquerda, a bala rasgando uma linha de carne até a orelha e entrando no crânio. Alguns tinham vívidas feridas roxas que desciam pelo lado esquerdo da garganta. Um fora castrado. Todos tinham os olhos arregalados, e as moscas já tinham começado a se juntar. Os mais novos tinham talvez apenas 12 ou 13 anos (...)”
“Foram os Cristãos”: Massacre no acampamento de refugiados de Chatila.Robert Fisk, The Times, 20 de setembro de 1982. (O grande livro do jornalismo. Editado por Jon E. Lewis. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de janeiro, José Oympio, 2008)
Aumenta entre analistas e dirigentes políticos a expectativa de uma intervenção internacional na Líbia de Muamar Khadafi.
As recentes e acertadas resoluções do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), aprovando sanções à Líbia – proibição da venda de armas ao país africano, congelamento dos bens de Khadafi e aliados no exterior e abertura de investigação, no Tribunal Penal Internacional, sobre as denúncias da oposição contra o líder líbio por crimes contra a humanidade -, parecem ter acendido o sinal de alerta para lideranças latinas.
Para o presidente venezuelano Hugo Chávez, que teme uma intervenção armada estadunidense à Líbia, há falta de disposição do ocidente para o diálogo com o país africano. Os EUA, segundo Chávez, estariam de olho no petróleo líbio e, ratificando as recentes declarações públicas do ditador africano, distorcendo e exagerando, propositadamente, o que verdadeiramente se passa no país. O presidente latino-americano defende a solução negociada para o conflito e informou que pretende conversar sobre essa proposta com países da Europa e com os membros da Aliança Bolivariana para os Povos da América (ALBA), integrada pela Venezuela, Cuba, Bolívia, Nicarágua, República Dominica, Equador, Antigua e Barbuda e São Vicente e Granadinas.
No dia 28 de fevereiro, em Genebra, na Suiça, durante reunião extraordinária no Conselho de Direitos Humanos da ONU, o representante cubano, Rodolfo Reyes, afirmou que o governo de seu país defende a necessidade de se respeitar a soberania líbia. Segundo Reys, os EUA estariam incitando a violência, a agressão militar e a interferência estrangeira na Líbia; “Esperamos que o povo líbio conquiste um Estado precoce pacífico e soberano criado, sem qualquer ingerência estrangeira ou de intervenção, para assegurar a integridade da nação da Líbia”, teria comentado o conselheiro ao Granma, jornal oficial cubano, segundo informações da Rede Brasil Atual. Cuba, ainda segundo Reys - que afirmou ter sido informado de planos para uma intervenção militar humanitária no país africano -, rejeita categoricamente qualquer proposta de intervenção internacional na Líbia.
Já a representante brasileira na reunião do Conselho, ministra da Secretaria dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, criticou a seletividade com a qual, historicamente, a ONU trata questões de direitos humanos e a predominância de interesses políticos nas diligências sobre as violações dos direitos fundamentais conduzidas pela Organização, mas observou, em claro recado à diplomacia líbia, que “nenhum governo se sustentará pela força e pela violência” e que “nenhum povo suportará, em silêncio, a violação de seus direitos fundamentais”. Ainda segundo a ministra, dessa feita em claro recado à comunidade internacional e a excessos que porventura possam ser cometidos em seu nome, “o Brasil entende que posições econômicas e sociais não devem servir de pretexto para a violação dos direitos humanos. Todavia, a violação desses direitos tampouco pode ser um pretexto para ações unilaterais, sem o respaldo da comunidade internacional”.
Como se não bastassem os rumores diplomáticos, lideranças líbias contrárias a Muamar Khadafi se disseram, terça-feira (1°), tentadas a pedir ataques aéreos contra as forças governistas. Tais lideranças também teriam afirmado à imprensa estadunidense que estão perdendo as esperanças de que um levante popular seja capaz de derrubar o ditador líbio, donde a necessidade de se atacar, sob a bandeira da ONU, “alvos estratégicos”. Para Abdel-Hafidh Ghoga, porta-voz da coalização civil que dirige Benghazi, segunda maior cidade líbia, se tal ação ocorresse sob a bandeira das Nações Unidas, não estaríamos diante de “uma intervenção estrangeira”.
Noves fora a não poucas vezes justificada obsessão chavista por ardis estadunidenses – não obstante parecer não ter limites o empenho da Casa Branca a fim de corroborar tais teorias conspiratórias, como bem demonstrou a família Bush, o levante líbio parece ter pouco a ver, pelo menos por enquanto, já que estamos falando da administração de uma região estratégica do ponto de vista geopolítico, com artimanhas diplomáticas estadunidenses na região – e a falta de memória do representante cubano no Conselho de Direitos Humanos da ONU - que parece ter esquecido a interferência cubana e soviética, na última década de 60, na autodeterminação de países latino-americanos -, parece inevitável, para o bem ou para o mal, a mediação internacional no conflito que opõe rebeldes e o governo líbio de Muamar Khadafi, seja para negociar seu afastamento, caso se trate da vontade popular, seja para se evitar o provável banho de sangue que advirá, pela via da repressão oficial – para quem não sabe, a Líbia não tem Constituição, sendo governada por ideias esparsas anotadas por Khadafi numa espécie de diário político; uma dessas ideias prevê a execução sumária em caso de “traição” à pátria, eufemismo para “L'État c'est moi” -, após uma possível rendição dos rebeldes.
A história é pródiga em exemplos de levantes populares e oposicionistas, étnicos ou políticos, sufocados e, posteriormente, duramente perseguidos e reprimidos. Que o digam os refugiados palestinos no campo de Chatila, no Líbano, e os xiitas iraquianos de Dujail.
Nenhuma mediação, porém - ou mesmo uma medida extrema como a intervenção -, pode servir de subterfúgio para um novo Iraque ou Afeganistão. As rédeas da negociação – já que o cavalo, ao que tudo indica, parece estar sendo encilhado pelos EUA - devem ser tomadas, urgentemente, pelas Nações Unidas, a fim de se pedir o cessar-fogo imediato na Líbia e a abertura do diálogo entre rebeldes e governistas. Do contrário, mais uma vez restará desmoralizada a comunidade internacional.
Pois todo sangue, depois de derramado, não tem religião, raça ou preferência política, e muito menos é capaz de dialogar. É só sangue.
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