Se o tempo conta para a arte, um dos aspectos a serem considerados pelo futuro, será certamente a convicção de setores da vanguarda, (cercada de todo o aparato ideológico de que os séculos XX e XXI são pródigos), de que qualquer objeto artístico é, antes de tudo, um produto, não mais que um produto. Trata-se, sem rebuços, da cultura da iconoclastia erigida em teoria estética. Foi por tê-la, alegadamente, como princípio, que a gerência do SESC-Itaquera houve por bem destruir um painel de 118 metros quadrados, criado para comemorar os 450 anos de São Paulo. Ninguém avisou o artista da "transitoriedade" da sua obra quando ela lhe foi encomendada, - nem ele, nem as 100 pessoas que se dispuseram a ser carimbadas no painel. E ao qual - justamente na contramão do perecimento suposta da obra, - foi aduzido uma das mais resistentes peças artísticas já inventadas pelos homens, que é o vitral. Desde que deixado ao ar livre, sem a picareta de um vândalo, um vitral (feito a fogo, exatamente como se procedia na cobertura das ogivas das igrejas medievais) pode durar mil anos. No entanto, tanto o vitral que representava a figura do Santo São Paulo, quanto painel - que contava a saga do santo, - "assistido" por 100 impressões corporais, principalmente do povo de Itaquera, - foram devidamente destruídos há pouco pelo SESC Itaquera. Justificativa? A obra já teria cumprido a sua função.
Qualquer semelhança com o papel higiênico usado pode espantar na crueza da comparação, mas é isso mesmo. A história do painel e dos antecedentes que a fizeram, talvez devam de ser rememorados. Para construí-lo, o artista, contratado pelo SESC-Itaquera, pediu à instituição que montasse um grande suporte de madeira naval - a mais resistente às intempéries. Como todo o painel ficaria debaixo de uma marquise, o artista primeiro o cobriu de resina sintética - a obra teria de durar tanto quanto possível, não era isso? A seguir, iniciou a pintura: uma sucessão de representação de templos, do antigo Egito, passando pela Grécia, Idade Média, Renascença, à capelinha jesuítica barroca, (que teria sido a pedra inaugural da São Paulo), até a metrópole de hoje: este o pano de fundo do painel. Procedeu-se, então, a impressão dos corpos. As pessoas - homens, mulheres, crianças - iam para detrás de um biombo, despiam-se, tinham seus corpos pintados de diversas cores - e eram, ato contínuo, comprimidas contra o painel, de costas - o que sugeria nos corpos devidamente impressos, que olhavam para os muitos séculos da gênese, do início do cristianismo.
Paulo de Tarso, ou o homem santificado pela Igreja, que deu origem à cidade de São Paulo, foi o criador do catolicismo. Ao batizar a comunidade religiosa nascente como sendo "católikos" (do grego, que quer dizer "universal"), ele teria literalmente, instaurado o cristianismo, algo que, pela proposta, teria necessariamente de ser "perene". Não parecerá difícil imaginar a simbiose pensada pelo artista: no "empréstimo"dos corpos das pessoas, o painel se faria à imagem e semelhança da igreja e da cidade que, bem ou mal, foi obra dela - já que foram os jesuítas que batizaram São Paulo, com o nome que ela tem. A obra levou seis meses até ser completada. Para celebrá-la, enfim, foi encomendada ao compositor Willy Correa de Oliveira, uma peça - executada na noite oficial da sua inauguração - justamente com uma apresentação de 40 bailarinos, sob a direção do coreógrafo Ricardo Iazetta, o Zeta.
Ao contrário, porém, da sentença com que a Igreja consagra seus sacerdotes -que seria "Ad Aeternum, secum Meslquisedec" "Tu és eterno, segundo Melquizedec" - o SESC só admitiu a pretendida "eternidade" da obra, até a mudança de gerência da unidade. Ao suceder o gerente anterior, a nova administração, ao que se comenta, "inimiga figadal " da que tinha encomendado a obra, iniciou gestões para que o painel fosse explicitamente "retirado". A razão alegada - derrisória e simplória, para ser simpático- era de que o lugar precisava de uma porta, para dar lugar a um banheiro(??). Coisas do arquiteto, dizia o novo gerente.
Até então, a "concepção contemporânea, da transitoriedade da obra - digamos que isso exista - não entrara em questão. Às possíveis razões da esteticidade da vanguarda, opunham-se as necessidades "fisiológicas": urgia que se fizesse "um banheiro" (sic) no meio do painel. Esse o comunicado feito ao artista em meados do ano retrasado: ele que arrumasse um local para o painel na cidade, algures. O SESC até se encarregaria de desmontá-lo e colocá-lo numa nova localidade "proposta pelo artista."
Era uma idéia estapafúrdia: onde arrumar, em São Paulo, um prédio para abrigar um painel de 118 m2? O artista, naturalmente, rejeitou a proposta. A partir daí aconteceram dois fatos notáveis: o primeiro deu-se quando o gerente soube que o artista seria entrevistado pela rádio CBN. Ele ligou ao pintor prometendo que a obra continuaria incólume, mas que ele, "por favor" não desse entrevista alguma. O artista, apesar de tentar suspendê-la, acabou concedendo uma entrevista ao jornalista Milton Yung - mas ressalvou que já então havia a promessa, de parte do SESC de que a obra seria preservada. O segundo fato, porém, talvez seja mais significativo: um conhecido político, amigo do artista, hoje ministro de Estado do governo Dilma Rousseff, ligou para a diretor geral do SESC- São Paulo, Danilo Miranda. Ele que explicasse como é que o SESC, mentor das artes em São Paulo, podia tomar a iniciativa de destruir um painel que ele mesmo encomendara? O Diretor Geral disse então não só ao político, mas ao artista, que havia um mal entendido: nunca o SESC cogitara de retirar a obra do local em que estava. E que, se o fizesse, o primeiro a saber - como o marido da história - seria o artista. Não aconteceu.
Num fim de semana qualquer deste ano- não se sabe a data, precisamente - a obra foi desmontada, ou melhor, destruída. Não havia como pôr um pé de cabra no madeirame sem danificar seriamente o acrílico da pintura. Quanto ao vitral, de mais de cinco metros de altura, com a figura do santo - esse igualmente desapareceu: teria sido espatifado pelas proficientes picaretas do SESC?
A história toda, enfim, dá o que pensar. Compreensivelmente, quando o artista soube, por terceiros - freqüentadores do SESC - que a peça tinha sido desmontada ( com seu "ar encanado"como reclamava um poema de Drummond sobre uma casa antiga demolida ) fez o escarcéu previsível. Então sobrevieram as alegações de ordem, digamos, "ideológicas". A obra que ficou até 2010, já teria cumprido o seu ciclo. Não foi dito que o mecenato do SESC tem prazo de validade, nem que destruir obras que o mesmo SESC encomenda, não são recomendáveis para o nome de uma instituição, que até prova em contrário, como ocorreu, não tem por finalidade destruir peças de arte, sejam quais forem, mesmo as que ela própria não encomendou. No mais, houve a impressão corporal de mais de cem pessoas. Eles não importam para o futuro?
Talvez não seja por um mero acaso, enfim, que a destruição da obra se tenha dado com a posse do novo governo. Seria a forma de deixar bem claro que ao SESC, embora uma empresa paraestatal, pouco se lhe dá que ministros de governos progressistas reclamem que obras de arte devam ser respeitadas - embora, não em teoria, mas de fato, pertençam antes à comunidade do que às idiossincrasias de seus dirigentes. Restam, contudo, questões que não têm resolutamente nada a ver com os artistas, suas obras, ou com os seus direitos - mas com a sanha vandálica, mais precisamente, com estupidez fascista de uma instituição que há muito deveria estar sob o controle público, já que é do dinheiro que o Estado deixa de arrecadar, que ela se nutre e se faz de mecenas. E que nada justifica essa caixa preta a baixar seus diktats insolentes e desprezíveis por contar da impunidade que lhe garante sua condição de paraestatal regida pelo patronato brasileiro - como se essa situação lhe desse o direito a todos os cometimentos contra a cultura, e exatamente, por ter parte da imprensa e dos artistas nas mãos.
Em suma, como já foi dito, dá o que pensar. Inclusive o quanto convém a uma entidade como o SESC ter como álibi, a tal vanguarda desses tempos tão estranhos quanto os que estamos vivendo - não só no Brasil.
P.S. Escusado dizer que o pintor a que me refiro sou eu mesmo. Achei melhor escrever o texto na terceira pessoa, para poupar os leitores para o que poderia soar como uma queixa ou uma defesa. Prefiro que me considerem um acusador.
Qualquer semelhança com o papel higiênico usado pode espantar na crueza da comparação, mas é isso mesmo. A história do painel e dos antecedentes que a fizeram, talvez devam de ser rememorados. Para construí-lo, o artista, contratado pelo SESC-Itaquera, pediu à instituição que montasse um grande suporte de madeira naval - a mais resistente às intempéries. Como todo o painel ficaria debaixo de uma marquise, o artista primeiro o cobriu de resina sintética - a obra teria de durar tanto quanto possível, não era isso? A seguir, iniciou a pintura: uma sucessão de representação de templos, do antigo Egito, passando pela Grécia, Idade Média, Renascença, à capelinha jesuítica barroca, (que teria sido a pedra inaugural da São Paulo), até a metrópole de hoje: este o pano de fundo do painel. Procedeu-se, então, a impressão dos corpos. As pessoas - homens, mulheres, crianças - iam para detrás de um biombo, despiam-se, tinham seus corpos pintados de diversas cores - e eram, ato contínuo, comprimidas contra o painel, de costas - o que sugeria nos corpos devidamente impressos, que olhavam para os muitos séculos da gênese, do início do cristianismo.
Paulo de Tarso, ou o homem santificado pela Igreja, que deu origem à cidade de São Paulo, foi o criador do catolicismo. Ao batizar a comunidade religiosa nascente como sendo "católikos" (do grego, que quer dizer "universal"), ele teria literalmente, instaurado o cristianismo, algo que, pela proposta, teria necessariamente de ser "perene". Não parecerá difícil imaginar a simbiose pensada pelo artista: no "empréstimo"dos corpos das pessoas, o painel se faria à imagem e semelhança da igreja e da cidade que, bem ou mal, foi obra dela - já que foram os jesuítas que batizaram São Paulo, com o nome que ela tem. A obra levou seis meses até ser completada. Para celebrá-la, enfim, foi encomendada ao compositor Willy Correa de Oliveira, uma peça - executada na noite oficial da sua inauguração - justamente com uma apresentação de 40 bailarinos, sob a direção do coreógrafo Ricardo Iazetta, o Zeta.
Ao contrário, porém, da sentença com que a Igreja consagra seus sacerdotes -que seria "Ad Aeternum, secum Meslquisedec" "Tu és eterno, segundo Melquizedec" - o SESC só admitiu a pretendida "eternidade" da obra, até a mudança de gerência da unidade. Ao suceder o gerente anterior, a nova administração, ao que se comenta, "inimiga figadal " da que tinha encomendado a obra, iniciou gestões para que o painel fosse explicitamente "retirado". A razão alegada - derrisória e simplória, para ser simpático- era de que o lugar precisava de uma porta, para dar lugar a um banheiro(??). Coisas do arquiteto, dizia o novo gerente.
Até então, a "concepção contemporânea, da transitoriedade da obra - digamos que isso exista - não entrara em questão. Às possíveis razões da esteticidade da vanguarda, opunham-se as necessidades "fisiológicas": urgia que se fizesse "um banheiro" (sic) no meio do painel. Esse o comunicado feito ao artista em meados do ano retrasado: ele que arrumasse um local para o painel na cidade, algures. O SESC até se encarregaria de desmontá-lo e colocá-lo numa nova localidade "proposta pelo artista."
Era uma idéia estapafúrdia: onde arrumar, em São Paulo, um prédio para abrigar um painel de 118 m2? O artista, naturalmente, rejeitou a proposta. A partir daí aconteceram dois fatos notáveis: o primeiro deu-se quando o gerente soube que o artista seria entrevistado pela rádio CBN. Ele ligou ao pintor prometendo que a obra continuaria incólume, mas que ele, "por favor" não desse entrevista alguma. O artista, apesar de tentar suspendê-la, acabou concedendo uma entrevista ao jornalista Milton Yung - mas ressalvou que já então havia a promessa, de parte do SESC de que a obra seria preservada. O segundo fato, porém, talvez seja mais significativo: um conhecido político, amigo do artista, hoje ministro de Estado do governo Dilma Rousseff, ligou para a diretor geral do SESC- São Paulo, Danilo Miranda. Ele que explicasse como é que o SESC, mentor das artes em São Paulo, podia tomar a iniciativa de destruir um painel que ele mesmo encomendara? O Diretor Geral disse então não só ao político, mas ao artista, que havia um mal entendido: nunca o SESC cogitara de retirar a obra do local em que estava. E que, se o fizesse, o primeiro a saber - como o marido da história - seria o artista. Não aconteceu.
Num fim de semana qualquer deste ano- não se sabe a data, precisamente - a obra foi desmontada, ou melhor, destruída. Não havia como pôr um pé de cabra no madeirame sem danificar seriamente o acrílico da pintura. Quanto ao vitral, de mais de cinco metros de altura, com a figura do santo - esse igualmente desapareceu: teria sido espatifado pelas proficientes picaretas do SESC?
A história toda, enfim, dá o que pensar. Compreensivelmente, quando o artista soube, por terceiros - freqüentadores do SESC - que a peça tinha sido desmontada ( com seu "ar encanado"como reclamava um poema de Drummond sobre uma casa antiga demolida ) fez o escarcéu previsível. Então sobrevieram as alegações de ordem, digamos, "ideológicas". A obra que ficou até 2010, já teria cumprido o seu ciclo. Não foi dito que o mecenato do SESC tem prazo de validade, nem que destruir obras que o mesmo SESC encomenda, não são recomendáveis para o nome de uma instituição, que até prova em contrário, como ocorreu, não tem por finalidade destruir peças de arte, sejam quais forem, mesmo as que ela própria não encomendou. No mais, houve a impressão corporal de mais de cem pessoas. Eles não importam para o futuro?
Talvez não seja por um mero acaso, enfim, que a destruição da obra se tenha dado com a posse do novo governo. Seria a forma de deixar bem claro que ao SESC, embora uma empresa paraestatal, pouco se lhe dá que ministros de governos progressistas reclamem que obras de arte devam ser respeitadas - embora, não em teoria, mas de fato, pertençam antes à comunidade do que às idiossincrasias de seus dirigentes. Restam, contudo, questões que não têm resolutamente nada a ver com os artistas, suas obras, ou com os seus direitos - mas com a sanha vandálica, mais precisamente, com estupidez fascista de uma instituição que há muito deveria estar sob o controle público, já que é do dinheiro que o Estado deixa de arrecadar, que ela se nutre e se faz de mecenas. E que nada justifica essa caixa preta a baixar seus diktats insolentes e desprezíveis por contar da impunidade que lhe garante sua condição de paraestatal regida pelo patronato brasileiro - como se essa situação lhe desse o direito a todos os cometimentos contra a cultura, e exatamente, por ter parte da imprensa e dos artistas nas mãos.
Em suma, como já foi dito, dá o que pensar. Inclusive o quanto convém a uma entidade como o SESC ter como álibi, a tal vanguarda desses tempos tão estranhos quanto os que estamos vivendo - não só no Brasil.
P.S. Escusado dizer que o pintor a que me refiro sou eu mesmo. Achei melhor escrever o texto na terceira pessoa, para poupar os leitores para o que poderia soar como uma queixa ou uma defesa. Prefiro que me considerem um acusador.
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