terça-feira, 5 de outubro de 2010

O CORONELISMO ELETRÔNICO EVANGÉLICO

Uma concessão pública que, por definição, deve estar "a serviço" de toda a população pode atender interesses particulares de qualquer natureza – inclusive ou, sobretudo, religiosos? Se a radiodifusão é um serviço público cuja exploração é concedida pelo Estado, pode esse serviço ser utilizado para proselitismo religioso?
Venício Lima - Observatório da Imprensa
Prefácio de Coronelismo eletrônico evangélico, de Valdemar Figueredo Filho, Publ!T Soluções Editoriais, Rio de Janeiro, 2010.
Estado e Igreja Católica Romana sempre estiveram muito próximos no Brasil. Herdamos dos colonizadores portugueses esse vínculo e não foi por acaso que fomos chamados de "Terra de Santa Cruz" e o primeiro ato solene em solo brasileiro tenha sido a celebração de uma missa.
A Constituição outorgada de 1824 estabelecia o catolicismo como religião oficial do Império. Essa condição perdurou até o início da República quando Deodoro da Fonseca assinou o Decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1890. Desde então, instaurou-se a separação oficial entre Igreja e Estado e nos tornamos, do ponto de vista legal, um Estado laico. Na sua origem latina a palavra significa leigo, secular, neutro, por oposição a eclesiástico, religioso.
Frente parlamentar.
Embora no Preâmbulo da Constituição de 1988 conste que ela foi promulgada "sob a proteção de Deus", o inciso I do artigo 19, é claro:
Artigo 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na formada lei, a colaboração de interesse público.
Por ser a Constituição de um Estado laico e em coerência com o Artigo 19, a alínea b, do inciso VI do artigo 150, proíbe a tributação sobre "templos de qualquer culto" para não "embaraçar-lhes o funcionamento" do ponto de vista financeiro.
Exatamente pelo caráter laico formal do Estado brasileiro, a crescente participação de igrejas no sistema de comunicações e na política vem, gradativamente, merecendo a atenção de analistas e pesquisadores.
Coronelismo eletrônico evangélico do cientista político Valdemar Figueredo Filho, originalmente tese de doutorado defendida no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, IUPERJ, constitui uma importante contribuição ao entendimento de parcela significativa das relações entre Estado e religião no nosso país.
O argumento principal de Figueredo Filho é que "a representação política evangélica é o mesmo que representação das redes de comunicação evangélicas" e "nem mesmo os supostos valores morais comuns ao grupo religioso conseguem o grau de coesão alcançados pelos interesses relacionados à formação, manutenção e expansão de suas redes de comunicação". No contexto legal que regula a concessão, renovação e o cancelamento dos serviços públicos de rádio e televisão no Brasil, isso significa a manutenção de um tipo particular de coronelismo eletrônico, agora o evangélico.
A representação evangélica no Congresso Nacional tem aumentado na medida em que também aumenta o percentual de evangélicos no total da população brasileira. Dados levantados por Figueredo Filho para o ano de 2000 indicam que esse percentual já atingia 15,6% contra apenas 9% em 1990. Em relação à representação política, no entanto, há uma diferença fundamental. Se até o final da década de 1980 ela era composta, sobretudo, por usuários do rádio e da televisão (a chamada "igreja eletrônica"), a partir de então ela passou a ser principalmente de concessionários deste serviço público.
A pesquisa realizada por Figueredo Filho, baseda em informações da Anatel e da Abert, até março de 2006, revela que 25,18% das emissoras de rádio FM e 20,55% das AM nas capitais brasileiras são evangélicas. Há de se notar, no entanto, que as denominações Pentecostais são as que controlam o maior número de concessões, destacando-se a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), entre as emissoras FM, e a Igreja Assembléia de Deus (IAD), entre as AM.
Em relação à televisão, além do grande número de programas evangélicos que é transmitido por emissoras de TV abertas, existem também redes cujas entidades concessionárias são igrejas. E, sobretudo, existe um grande número de retransmissoras (RTVs) controladas diretamente por igrejas.
A criação de uma Frente Parlamentar Evangélica, ainda em 2003, formaliza a articulação dos interesses evangélicos no Congresso Nacional. Estes são defendidos através da participação de seus membros nas comissões de Comunicação tanto na Câmara quanto no Senado e nas votações das proposições legislativas em plenário.
Rádios comunitárias.
O livro de Figueredo Filho mostra que, a exemplo do que ocorre também em relação às outorgas de rádios comunitárias, número expressivo das concessionárias das emissoras de rádio e televisão (aberta) e RTVs estão vinculadas a entidades religiosas. E mais ainda: seus representantes são atores políticos que atuam de forma articulada no Congresso Nacional na defesa de interesses religiosos e na formação, manutenção e ampliação da suas redes de comunicação.
Obviamente os evangélicos não são o único grupo religioso concessionário do serviço público de radiodifusão. E a utilização de concessões públicas não é a única forma de atuação de grupos religiosos na mídia.
O livro de Figueredo Filho levanta, todavia, uma questão que não pode ser ignorada: uma concessão pública que, por definição, deve estar "a serviço" de toda a população pode continuar a atender interesses particulares de qualquer natureza – inclusive ou, sobretudo, religiosos? Ou, de forma mais direta: se a radiodifusão é um serviço público cuja exploração é concedida pelo Estado (laico), pode esse serviço ser utilizado para proselitismo religioso?
Curiosamente a Lei 9.612/1998 proíbe o proselitismo de qualquer natureza (§ 1º do artigo 4º) nas rádios comunitárias. Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 2566 de 14 de novembro de 2001), contra esta proibição, ainda aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal. Até o julgamento, cabe perguntar: a norma que vale para as outorgas de rádios comunitárias não deveria valer também para as emissoras de rádio e de televisão pagas e/ou abertas? Brasília, julho de 2.010

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