Socrates
Telê Santana sabia disso. O mestre trazia adversários de verdade, que queriam mostrar serviço nos treinos da Seleção. E sabiam que esses jogos eram uma vitrine poderosa
Nenhum jogador gosta de treinar sem bola! Esta foi uma das minhas inúmeras constatações durante os 15 anos de militância na área. Em princípio, pensei se tratar de um sentimento pessoal, uma intuição de estreita relação com a situação em que me encontrava. Também das dificuldades que tinha para arranjar tempo necessário para me dedicar aos treinamentos de campo, diante do fato de ser estudante de medicina ou mesmo arredio aos suores provocados por exaustivas sessões de atividades físicas, muitas vezes incompatíveis com a minha realidade estrutural.
Quando fui orientado por Telê Santana, imediatamente percebi uma distância gigantesca de sua filosofia de trabalho com a dos outros treinadores com os quais atuara: a maior parte do tempo que era dedicado ao desenvolvimento dos fundamentos necessários para a melhora de nossas qualidades técnicas o era em contato com a bola. E, principalmente, mimetizando a competição que enfrentaríamos logo a seguir. Ou seja, ele provocava em treinos situações que seriam encontradas nos jogos.
Conheci Telê quando ele me convocou pela primeira vez para a Seleção Brasileira que acabara de assumir. Cheguei ao hotel apreensivo, o velho Solar das Paineiras. Não sei exatamente a razão, mas sempre me sinto um pouco desconfortável quando devo enfrentar situações desconhecidas, seja por culpa do ambiente, seja das pessoas. Felizmente, a maior parte dos outros companheiros eu já conhecia bem.
Entrando no hall, percebo algumas pessoas sentadas à minha direita. Dirijo-me para cumprimentá-las. Ele era um deles. Percebi que se vestia com simplicidade e estava sentado confortável e discretamente. Quando me viu, abriu um largo e tímido sorriso e fez questão de se levantar para se aproximar. Demo-nos as mãos. Seu olhar era profundo e incisivo, despertava absoluta confiança. Sua pele áspera e rude estampava a trajetória de vida. Apesar de sua pequena estatura, passava uma impressão forte e segura. Não pude deixar de compará-lo a meu pai. Soube a partir daquele instante que nos daríamos muito bem. Indivíduos que possuem entre suas virtudes a sensatez e a sinceridade facilitam os relacionamentos, mesmo em posições hierárquicas diferentes. As relações, neste caso, sempre são transparentes e honestas.
Já nos primeiros contatos em campo percebi que ali havia algo diverso do que conhecia até então. Todos os dias, em algum período, enfrentávamos um adversário. Em geral, não os companheiros que ficavam ou ficariam na reserva da equipe, e, sim, um oponente sem compromisso conosco, que não dividia a mesma mesa nem desfrutava da mesma refeição.
Era um adversário de verdade querendo mostrar serviço não só ao técnico da Seleção, mas também e principalmente à população brasileira que acompanhava com paixão os treinos do time nacional. Uma verdadeira competição como a de qualquer jogo oficial. Já ali entendi o seu objetivo, mesmo que fosse intuitivo e sensitivo, ou mesmo que fosse exclusivamente técnico. E, na verdade, os resultados físicos se mostravam muito mais rapidamente que os táticos ou os técnicos.
Alguns meses mais tarde, outra surpresa. Desta vez, muito mais agradável: eu seria o capitão da equipe. Mas também sabia que aquilo era uma tremenda responsabilidade que ele colocava nos meus ombros. Chegar à Seleção Brasileira sempre foi um sonho e foi o que me fez retardar a carreira médica, mas jamais havia imaginado que um dia assumiria algo tão portentoso.
Carregar aquela tarja verde-amarela no braço esquerdo era um peso e uma honra, que eu deveria rapidamente entender o que representava. Mesmo assustado com a novidade, sentia-me orgulhoso e confiante. O que mais intrigava era por que ele havia me escolhido, se no primeiro jogo nem mesmo fui titular? Que tipo de lógica ele tinha utilizado para determinar a nova ordem? Até hoje não tenho convicção das suas razões, mesmo que tenha suposições que, eventualmente, possam esclarecer estas dúvidas, mas só ele poderia responder a essas questões. Sabia apenas e mais que nunca que, a partir dali, eu teria de fazer de tudo para corresponder à sua confiança.
Confiança, aliás, que só aumentava a partir do que aprendia com ele. Uma das grandes lições que ele me deixou, por sinal, foi que o treino de futebol deve ser de uma forma ou de outra… futebol. Se o nadador treina nadando, se o sprinter treina correndo, por que não há de ser futebol o treino do jogador de futebol?
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