quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

MÁRIO DE ANDRADE

Da paulicéia ao desvario de todos os brasis.

Na dimensão de uma cidade multifacetada, até certo ponto bastante cruel para com seus habitantes, Mário de Andrade percebeu o poético inadivinhado de um mundo em construção. Sabia que São Paulo era um empreendimento constante e que, nas suas pegadas, adviria um país inteiro a reboque.
Talvez não seja apenas significativo que o mais importante intelectual brasileiro da primeira metade do século XX, tenha nascido em São Paulo - que fosse um mulato e que tivesse pensado o Brasil em praticamente todas as instâncias da sua cultura - das artes plásticas, ao folclore, passando pela música, a literatura e sabe-se mais o quê. Mário do Andrade, de fato, poderia ter se cingido à paulicéia em seus desvarios como o maior centro a se industrializar no País - com seus rios a sendo intoxicados pelos dejetos das fábricas em seus primórdios; e o seu crescimento desmesurado, com a chegada da mão-de-obra barata vinda principalmente do nordeste. Caberia, quem sabe então, inquirir se foi Mário de Andrade quem inventou São Paulo; ou se foi São Paulo que pariu Mário de Andrade. A última hipótese parece a mais plausível: se o homem é a sua circunstância, não haveria como imaginar outra resposta. É a velha história: sem a Revolução de 1789, a França não teria sido invadida. E, então, Napoleão seria apenas um bom aluno da escola militar Real, de Paris, etc. etc.. Mas Napoleão fez a história da França. Logo...
Seja como for, Mário de Andrade parece ter intuído bem o contexto da predominância de São Paulo sobre o resto do País. Ou nasciam daqui as reflexões totalizadoras sobre um Brasil ignorado pelos brasileiros, ou seria difícil a síntese que ele intentou ao mobilizar intelectuais de norte a sul, para pensar, criticamente, o Brasil, para dissecá-lo, em suma. É muito provável, contudo, que a idéia que daí nasceu, acabaria de uma certa maneira diluída. O personagem "Macunaíma" - "ai que preguiça!" - persiste, sem dúvida, na idéia do "bom malandro"- o tipo simpático que, até certo ponto, ainda se define no brasileiro "cordial". Mas os migrantes que assumiram seus lugares nas linhas de montagem das indústrias, constituíram-se num modelo de trabalhador disciplinado, sofredor e até conformado. No fundo, bastante diferente do personagem arquetípico do brasileiro inventado pelo escritor.
Ao que parece, os "macunaímas" que baixaram em São Paulo, conformaram-se de que até Deus só descansou no sétimo dia, precisamente porque o mundo novo, contemporâneo do capitalismo em mutação, é feito sempre de segundas-feiras; ou melhor, de um ativismo acróitico impreterível, não muito diferente daquele do comendador, o empresário típico, do mesmo "Macunaíma". Esse, como conta o livro, devorava homens por não ter, igualmente, qualquer consciência da autofagia também inscrita na sua atividade. Tempos atrás, um dos maiores industriais brasileiros - paulistano naturalmente - ao admitir só ter saído do Brasil a trabalho e, ao conceder que iria viajar com a esposa para, finalmente, tirar férias depois de dezenas de anos - não concluía, por via de conseqüência que, como dizia Manuel Bandeira (grande amigo de Mário de Andrade), trabalhara para ter toda uma vida "que podia ter sido, mas que não foi".
Mário de Andrade, a seu turno, ele próprio, no fim das contas parece ter sido muito pouco "macunaímico". Os que o conheceram, dizem ter sido um trabalhador incansável. Foi o que afirmou com a sua autoridade de grande mestre, o professor Antônio Cândido num programa da TV Cultura dedicado ao escritor, levado ao ar uma semana atrás. Como disse o professor, Mário nunca deixou de responder cartas, fossem de seus amigos, fosse do mais

obscuro candidato a poeta do interior de Minas ou do Rio Grande do Sul. No fundo -e a constatação é anda de Antônio Cândido - Mário de Andrade, mercê da sua grande generosidade, foi sobretudo um grande epistológrafo - talvez o maior do Brasil - mas sem qualquer dúvida, o mais consciente. .Fica a pergunta: teria assumido que, como paulistano, haveria que responder ao Brasil nos limites não só da sua importância, mas da proeminência de São Paulo em face do resto do País?
É possível. Talvez projetasse que a inevitabilidade do progresso, visto como uma condenação (que era o que dizia do progresso, Euclides da Cunha), induziria a que o Brasil se espelhasse em São Paulo. E que muitas de suas mazelas contagiassem todo o resto, como, afinal, aconteceu. No que lhe cabia como parte da sua "paulistanidade" assumida, Mário de Andrade prevenia-se de que seu missionarismo cultural, era a única resposta a um modelo que logo se tornaria hegemônico. E que, de um modo geral, só faria por alienar o Brasil de si mesmo.
Talvez seu anti-positivismo tenha sido o mais notável, da sua contribuição, não apenas para a Paulicéia. Ao insistir numa obra eclética, na qual cabia tudo - da crítica musical, à literatura assumida tanto na poesia, quanto na ficção, ao ensaísmo, mas principalmente na insistência sobre o "nenhum caráter" de seu personagem símbolo, Macunaíma- ele prescrevia a fórmula contra a alienação do sistema que então se iniciava: na sociedade capitalista, administradora de mentes e vontades: o olhar só se espraia quando se nutre da naturalidade de ser homem. Macunaíma, seu personagem-símbolo, morre feliz nos braços alagados da mãe-d'água. Para Mário, a crítica a ser sorvida seria o que ele afirmava no que, em seu poema "Ode ao Burguês", sobressai como negatividade e que ele condenava, como
"a digestão bem feita de São Paulo/o homem curva/ o homem-nádegas/ o homem que sendo francês, brasileiro, italiano/ é sempre um cauteloso pouco-a-pouco".
Mário de Andrade, felizmente para ele próprio, não viveu a eclosão da ditadura de 64: essa teria sido o último capítulo do positivismo virtual que engendrou a cidade para o pior que ele previra. De repente, o pouco caso com os seus rios, a própria defesa da poluição como fator de progresso, impôs-se ao país como que um mau modelo a ser seguido. E se São Paulo ainda sofre os efeitos da lição que ela, como cidade, receitou para si própria, talvez caiba um retorno a Mário de Andrade. A começar pelos momentos finais da sua vida (morreu relativamente moço, com não mais de 51 anos).
É de se cismar, por exemplo, em torno da forma com que foi demitido do Departamento de Cultura (que ele criou), e que, quem o pôs no olho da rua, tenha sido justa e significativamente um de seus possíveis antípodas - o engenheiro e prefeito Prestes Maia. Deveria ter alegado algumas razões para fazê-lo, mas o professor Antônio Cândido, em seu depoimento, não hesitou em considerar a intensa campanha de difamação contra o escritor, o motivo maior para a sua demissão.
Supondo-se, enfim, as razões sempre alegadas para as demissões de quem quer que seja- a começar pelo princípio absurdo "de que ninguém é insubstituível"- consoante a consideração capitalista de que todos os homens são apenas mão-de-obra (como se um Beethoven pudesse ser trocado por qualquer Zé Mané de seu tempo), o que resta, para algumas reflexões sobre São Paulo, não é tanto o legado do escritor, mas o do prefeito.
Prestes Maia foi o homem que fez de São Paulo o reduto preferencial dos automóveis: as razões que o induziram a prever o crescimento da indústria automobilística talvez encontre defensores entre urbanistas ou muitos economistas. Na esteira do progresso e da industrialização, o automóvel aduz um salto qualitativo importante, tanto para, a longo prazo, dificultar o trânsito das pessoas, quanto para poluir as cidades. Pode-se agregar, portanto, como ganhos para alguns setores, o estresse despendido nos carros e, sobretudo, a poluição, que implica o crescimento da rede hospitalar. Afinal. o crescimento do PIB faz-se também na ocorrência de hecatombes. Difícil imaginar, a propósito, que Mário de Andrade trocasse de bom grado ir para a sua casa, não de metrô, mas de automóvel. Seria, em suma, a negação da visão de Prestes Maia que ele introduzisse o metrô em São Paulo, e não o automóvel como, aliás, aconteceu. Inclusive, naturalmente, com a abertura das grandes avenidas da cidade, a concluir - durante a Ditadura- pelas que se alagam nas Marginais.
Uma das questões a ser pensada, talvez seja essa. E que resulta ser o paulistano Mário de Andrade o maior repto ao prefeito que hoje é nome de avenida. Dá-se que o homem que, no fundo da sua condição de paulistano, foi o melhor pensador da cultura brasileira, deve ter tido bem claro o que o esperava, como parte da dinâmica da cidade que o fez. Na verdade, a auto-destruição como resultado do crescimento de São Paulo estava já inscrita na sua poesia, nos seus ensaios e muito na sua música: Mário pespegou como ninguém no folclore, na música popular de seu tempo (nada a ver com a música industrializada de hoje em dia), a riqueza de toda uma cultura. Na dimensão de uma cidade multifacetada, até certo ponto bastante cruel para com seus habitantes, ele percebeu o poético inadivinhado de um mundo em construção. Sabia que São Paulo era um empreendimento constante e que, nas suas pegadas, adviria um país inteiro a reboque. Primeiro como um modelo a ser seguido que foi como os militares conceberam a sua "república" positivista, que eles inauguraram depois de 64; mais tarde, enfim, com a quase sem saída do modelo, a rigor, bem sucedido para o sistema. No tempo de Mário de Andrade, que corresponde ao momento em que surgem Villa-Lobos, Portinari, Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Camargo Guarnieri, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo e por aí afora, a paulicéia não era ainda o desvario paradigmático para o resto da civilização brasileira.
É uma questão a ser pensada, mas é o que fica do seu poema "Meditação sobre o Tietê", talvez a melhor pergunta de um paulistano a sua cidade mais que quadricentenária:
Há muito mais neste paulistano que arrostou o futuro da sua cidade. Mas houve também a bonomia brincalhona - esta, sem dúvida, macunaímica - que é o que talvez nos salve. Foi quando Mário de Andrade definiu-se a si mesmo: "Eu sou um escritor difícil/ Que a muita gente enquizila/ Porém essa culpa é fácil/ De se acabar duma vez/ É só tirar a cortina/ Que entra luz nesta escurez".
"Por que os homens não me escutam? Por que os/ governantes/ Não me escutam? Por que não me escutam/ os plutocratas e todos os que são chefes e são fezes?/ Todos os donos da vida?/ Eu lhes daria o impossível e lhes daria o segredo/ Eu lhes dava tudo aquilo que fica pra cá do grito/Metálico dos números, e tudo/ O que está além da insinuação cruenta da posse,/ E si acaso eles protestassem que não/ Que não desejam/ A borboleta translúcida da humana vida, porque/ preferem/ o retrato a óleo nas inaugurações espontâneas,/ Com béstias de operário e de oficial imediatamente/ inferior/ É palminhas e mais os sorrisos das máscaras e a profunda comoção,/ Pois não! Melhor que isso eu lhes dava uma felicidade/ deslumbrante/ De que eu consegui me despojar porque tudo sacrifiquei,/Sejamos generosíssimos. E enquanto os chefes e as fezes/ Da mamadeira ficassem na creche de laca e lacinhos,/Ingênuos brincando de felicidade deslumbrante:/ Nós iríamos de camisas aberta ao peito/ Descendo verdadeiros ao léu da corrente do rio,/ entrando na terra dos homens ao coro das quatro/ estações".

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