Para quem estivesse um pouco ausente do País nos últimos tempos algumas hipotéticas manchetes sobre a Previdência Social, o Código Florestal, o ministro da Casa Civil e a privatização de aeroportos seriam um sinal de grave alteração na cena política brasileira.
Paulo Kliass, na Carta Maior.
A paternidade da frase é normalmente atribuída ao antigo dirigente do partido do governo à época da ditadura militar, a ARENA, Francelino Pereira. Em 1976, na condição de líder do governo do General Geisel, lançou a pergunta em um evento em SP. O mote foi imediatamente apropriado pela oposição à ditadura e depois acabou virando título de livro, de filme e por aí vai. Na verdade, reflete bem um misto de dúvida, indignação, surpresa e até mesmo a confissão de ignorância a respeito da essência mesma da nossa forma de ser, de estar e de agir.
Afinal, trata-se de uma formação social que nos surpreende a cada instante. Muitas vezes, de forma positiva, apresentando soluções inovadoras e oferecendo a seus cidadãos e ao resto do mundo aspectos que nos orgulham da condição da nossa brasilidade. Infelizmente, no entanto, por outro lado não são poucas as situações em que os fenômenos da dinâmica política nos enchem de perplexidade e indignação.
Para quem estivesse um pouco ausente do País nos últimos tempos – pouca coisa, não mais do que 2 semanas - as hipotéticas manchetes abaixo seriam um sinal de grave alteração na cena política brasileira:
“Governo anuncia desoneração da folha de pagamento para Previdência Social, antiga reivindicação do patronato”
“Base parlamentar do governo aprova alterações no Código Florestal que favorecem o agronegócio e compromete o futuro do meio-ambiente”
“Ministro da Casa Civil declara que a multiplicação de seu patrimônio por vinte vezes é lícita, pois ocorreu quando estava fora do governo”
“Presidente anuncia privatização dos principais aeroportos do Brasil”
Peraí, deixa eu tentar entender melhor!
Quer dizer que um governo presidido pelo Partido dos Trabalhadores toma a iniciativa, de moto próprio, de apresentar ao Congresso Nacional uma medida para viabilizar essa antiga reivindicação do patronato brasileiro, qual seja a desoneração da folha de pagamentos como a fonte de financiamento do sistema de Previdência Social?
Além disso, o governo pressiona e as Centrais Sindicais de sua base parlamentar aceitam apoiar politicamente a medida, apenas com a promessa de que não haveria perdas para as futuras gerações de aposentados e pensionistas? E conformam-se apenas com a menção dos estudos que garantem que uma eventual alíquota de 2% sobre um hipotético procedimento de cálculo do faturamento das empresas dará conta de tais necessidades?
Ou seja, isso significa que um modelo concebido há mais de 80 anos e operando com algumas alterações ao longo de todo esse período vai sofrer uma tal mudança estrutural, como se fosse tão somente uma pequena reforma nos jardins no fundo do quintal? Uma mudança feita em ritmo de urgência, sem nenhum debate e apenas para agradar aos empresários que adoram reclamar dos seus altos custos, mas que não se dispõem a discutir mecanismos de distribuição dos lucros. Um perigoso passo rumo ao desconhecido, paradoxalmente proposto e apoiado por aqueles que só teriam a perder com o risco da iniciativa intempestiva.
Em seguida, os partidos da base do governo – incluindo uma parcela expressiva de deputados do PT – resolvem se aliar aos representantes dos setores mais conservadores do empresariado e do núcleo dirigente do agronegócio para aprovar uma das alterações mais retrógradas para a política de meio-ambiente em nosso País. Tudo isso como o resultado de um processo que tem início há um bom tempo, com uma iniciativa que todos imaginavam individual, isolada, de um deputado do PCdoB, Aldo Rebelo. Há alguns meses, o ex-presidente da UNE resolveu assumir a relatoria do Projeto de Lei de alteração do Código Florestal. Com o desenrolar das negociações, ele surpreende a todos observadores ao iniciar uma colaboração orgânica e altamente sintonizada com a Senadora Katia Abreu.
Uma surpreendente empatia política do parlamentar comunista com aquela que vem a ser nada mais nada menos do que a Presidenta da Confederação Nacional da Agricultura, a entidade que luta pela defesa dos grandes negócios no campo e no chamado “agribusiness”.
O Projeto de Lei que foi aprovado pela Câmara dos Deputados no dia 24 de maio passado é escandoloso na proteção aos que sempre violaram as leis ambientais, estabelecendo mecanismos de anistia e moratória. Mais do que isso, o texto que ainda vai ser submetido ao Senado caminha na contramão de tudo o que vem sendo feito no Brasil nos últimos anos em termos de atualização da nossa legislação e prática ambientais. Por trás da falsidade do discurso contra os “ambientalistas que querem impedir o Brasil de desenvolver” e supostamente contra as “propostas das ONGs estrangeiras operando em nosso território contra os interesses do nosso povo”, o projeto abre todas as fronteiras para aprofundar ainda mais as práticas extrativistas e agrícolas que deterioram o meio ambiente, estimulam a derrubada descontrolada das áreas de preservação e florestas para permitir a continuidade do ciclo da deflorestação/pecuária extensiva/monocultura da soja e outras variações do mesmo gênero. O desafio que se apresenta para as forças progressistas é o de se debruçar na tarefa (difícil, é importante reconhecer!) de construir um novo paradigma de desenvolvimento sustentável que inclua a possibilidade do Brasil crescer economicamente, gerar emprego, aumentar sua renda e também preservar o seu patrimônio ambiental. Mas caiu-se na armadilha perigosa do caminho mais fácil. Gostaria de saber o que pensam os estudantes universitários, tão preocupados com o futuro do planeta e sempre ávidos por alternativas a esse modelo exaustivo, a respeito do silêncio da UNE face a esse processo tão carregado de irresponsabilidade política.
No mesmo período, vem a público a informação de que o patrimônio do Ministro Chefe da Casa Civil havia sido multiplicado por 20 durante um período de 4 anos, justamente quando estava afastado do Executivo – apenas exercia seu mandato de deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores. Aos poucos, novas informações não desmentidas davam conta de que aquele que deveria atuar como representante dos operários e assalariados na Câmara dos Deputados, havia recebido por meio de sua empresa de consultoria quase R$ 10 milhões apenas nos 2 meses entre as eleições de outubro passado e sua nomeação com ministro no início do ano. E o mais paradoxal é que as argumentações baseiam-se no histórico de personagens que ocuparam cargos semelhantes anteriormente a ele, a grande maioria composta de empresários, banqueiros, poderosos lobistas e representantes do capital financeiro.
Para aquele que ocupa o mais importante cargo no governo Dilma, a passagem pelos órgãos de decisão do governo na área da economia “proporciona uma experiência única que dá enorme valor (sic...) a esses profissionais” e apresenta em seguida uma longa lista de banqueiros tucanos para justificar seu procedimento. Como se estivesse a dizer que “se eles assim se comportaram, por que eu não poderia também fazê-lo?”. Eu, aqui na minha profunda ingenuidade, me arriscaria a dizer que talvez seja por questões que tenham a ver com aspectos relevantes, tais como a noção de ética e de defesa de interesses de classes antagônicas... Apenas a título de comparação, com o atual salário mínimo de R$ 545, um trabalhador brasileiro demoraria exatos 1.411 anos, 5 meses e 6 dias de trabalho (considerando-se o décimo terceiro salário inclusive) para ganhar o que o ministro recebeu em apenas 60 dias de consultoria.
Por último, a Presidenta acaba de anunciar a sua intenção de promover a privatização de alguns dos principais aeroportos do País: Guarulhos (SP), Viracopos (SP) e Brasília (DF). O argumento apresentado é o da urgência para cumprir o cronograma previsto para a Copa do Mundo de 2014, com a suposição implícita de que o setor privado teria condições de atender melhor a tais prazos. A INFRAERO, empresa pública federal atualmente responsável pelo funcionamento dos aeroportos, ficaria associada ao capital privado em até 49% das ações das chamadas Sociedades de Propósito Específico (SPEs) que seriam criadas para a gestão dos empreendimentos. Com isso, repete-se a velha fórmula de nosso capitalismo tupiniquim, onde todo o poder de decisão e os lucros ficam com o setor privado, mas o Estado pode vir a ser chamado a socorrer financeiramente, em caso de necessidade urgente...
O governo, que deveria supostamente atuar na defesa do interesse da maioria da população trabalhadora, opta por implementar políticas públicas contrárias a tudo que seus integrantes sempre defenderam antes da chegada ao poder federal. E o mais surpreendente, é que ele passa a colocar em prática medidas favoráveis aos grandes grupos econômicos e financeiros, que há muito tempo pressionavam pela abertura de mais esse filé para aumentar o horizonte de suas aplicações patrimoniais e a rentabilidade de seus negócios.
Ainda tomado pela perplexidade, eu incorporo as dúvidas de um hipotético estudante de História, no futuro e lá do distante Uzbequistão. De hoje a meio século, em 2061, ele estaria interessado em analisar e explicar o processo político que viveu esse esquisito gigante da América do Sul, nessa virada de milênio. Realmente, um árduo desafio! E retomo a pergunta do título: afinal, que País é este?
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