sexta-feira, 12 de novembro de 2010

TREM-BALA: O PERIGO DE QUEIMAR ETAPAS

Por Carlos Chagas
Agora que o duplo poder encontra-se na Coréia, vale aproveitar o interregno para mergulhar em tema mais profundo e menos pontual. O Senado discutiu, esta semana, a oportunidade do trem-bala, tendo em vista a necessidade de aprovar ou não   medida provisória abrindo crédito para a implantação do projeto. E sob a desconfiança de uma cláusula que transfere para o tesouro nacional os custos da obra caso o pool de empresas privadas responsáveis venha a   apresentar prejuízo. Quer dizer, se o trem-bala custar mais do que os bilhões que o BNDES adiantará, ou se o número de passageiros não corresponder à expectativa, a conta será apresentada para  nós, os contribuintes. Negócio fantástico para as empresas, por sinal.
A questão que se põe é se o Brasil necessita ou não dessa maravilha do mundo dos transportes, capaz de ligar São Paulo ao Rio em duas horas, apesar de estar beneficiando apenas as duas unidades mais ricas da federação. Questiona-se se seria preferível utilizar tanto dinheiro assim na construção de linhas férreas normais, interligando  o território nacional, a começar pela Norte-Sul que há décadas  arrasta-se feito tartaruga.
É preciso lembrar que até os anos sessenta viajava-se de trem do Rio Grande do Sul ao Rio de Janeiro, que o digam os revolucionários de 1930. Ao redor da  antiga capital funcionava  correta malha ferroviária: ia-se pelos trilhos  a Petrópolis,  Teresópolis, Friburgo, Santa Maria Madalena e Campos, para não falar do Vale do Paraíba e da correspondente ligação com as principais cidades de São Paulo. Não eram apenas passageiros a beneficiar-se, pois as composições levavam carga a preços muito mais baratos do que os caminhões.
De repente, foi tudo água abaixo. Com a “gloriosa”, a partir de 1964, implantou-se de forma definitiva o rodoviarismo. A recém instalada indústria automobilística nacional  deu as mãos ao complexo petrolífero internacional e a palavra de ordem foi “erradicar os ramais anti-econômicos” em vez de tentar torná-los econômicos. Cumpriu-se tão ao pé-da-letra esse crime de lesa-pátria que os trilhos e dormentes eram arrancados para que deles não nascessem filhotes. Os prédios das estações ferroviárias em cada município, mesmo os menores, foram doados às prefeituras, alguns  felizmente  transformados em escolas.  Até um dos ícones da nossa História foi levado de roldão: feito  ministro da Viação, o marechal Juarez Távora incorporou-se aos novos mandamentos ditados pelo artífice maior da carnificina, o ministro do Planejamento, Roberto Campos.
Em poucos anos desapareceram as estradas de ferro, que se estavam defasadas e anacrônicas, deveriam ter sido recuperadas, não extintas. Desativaram-se até  as ligações entre o Rio, São Paulo e Belo Horizonte, feitas em composições de luxo. Os mais desconfiados supõem, até hoje,   que em boa parte o massacre se fez para afastar do processo político e social a classe dos ferroviários, das mais ativas na resistência à ditadura. Tanto faz, porque o resultado foi essa interminável, inócua e caríssima estratégia de levar o transporte para as rodovias. A sabotagem teve mesmo um  episódio que teria sido cômico se não fosse trágico: no governo do general  Ernesto Geisel bilhões foram gastos para a implantação da chamada Ferrovia do Aço, ligando Minas ao Espírito Santo, só para transportar minério. Pontes, viadutos e túneis consumiram fabulosas somas de dinheiro, mas,  de repente, sem mais aquela, a obra foi abandonada. Ainda restam escombros da aventura malograda.
No governo José Sarney muita fumaça e pouco fogo,  na tentativa de recuperação do programa ferroviário, mas, pelo menos, a mentalidade começou a mudar. Fernando Collor nada fez, Itamar Franco tentou e Fernando Henrique tinha outras prioridades, como sepultar a Rede Ferroviária Federal, entregando-a ao capital privado que preferiu extinguí-la.
As coisas parecem diferentes, hoje, ao  menos plano das intenções. Mas será uma boa proposta começar a  realizá-las com o trem-bala? Vale repetir, não seria preferível investir em ferrovias mais lentas mas menos custosas, porque muito  mais amplas? Queimar etapas para recuperar o tempo perdido costuma ser perigos

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