domingo, 8 de agosto de 2010

LOGO ELE

Nery da Fonseca ironiza homenagem de FHC a Freyre: “Logo ele”
Um monge provocador
Edson Nery da Fonseca, aos 88 anos, mantém a memória impecável, a vocação para comentários ácidos e uma fé inabalável em São Bento.
Phelipe Rodrigues, no Diário de Pernambuco
O escritor Edson Nery da Fonseca é o maior especialista na obra do autor de Casa grande e senzala, o sociólogo Gilberto Freyre. Foi amigo e confidente por quatro décadas. Virou gilbertófilo e aprendeu com ele a polemizar. Aos 88 anos, mantém o raciocínio ágil e uma acidez deliciosa nos comentários. Um dia, foi raivoso.
Consegui quatro pontes de safena com esse sentimento. Hoje, estou calmo”, admite Edson, que virou oblato beneditino (quase monge no Mosteiro de São Bento, em Olinda). Mora ao lado da igreja. Na última quarta, quando a 8ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) foi aberta, declamou o poema Bahia. “Freyre, o grande homenageado do evento, passeia nesse texto por todas as raças que formam o estado. As palavras viram um quadro, uma fotografia”, emociona-se.
Antes de partir, concedeu esta entrevista. “As perguntas mais picantes que já recebi na vida”, divertia-se. Brincava também com a presença do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso na mesa de homenagens. “Logo ele, que foi aluno de Florestan Fernandes, o maior opositor de Freyre. Os dois acusavam-no de romantizar a escravidão. Logo ele, que contava histórias de violência extrema contra os negros”, alfineta. A conversa foge do roteiro central e envereda por muitos caminhos. “Por que o senhor não casou?”, surge de forma espontânea. “Sou homossexual. Transformei minha condição em objeto de estudo. Passei anos me investigando”.
Na biblioteca com mais de 15 mil volumes que já manteve em casa, guardava muitos títulos sobre homossexualidade. Um dos preferidos, que continua na estante é La question homossexuelle, escrito por um padre francês, Marc Oraison. “Ele explica o fenômeno de maneira científica, sem criar monstros, como todos fizeram antes dele”. No Brasil, o livro foi editado pela Nova Fronteira, editora de Carlos Lacerda. “O político carioca ficou sensível à causa quando se apaixonou pelo neto de Cecília Meireles”, dispara Edson.
Ao longo do século 20, o biblioteconomista mais conceituado do Brasil, fundador da Bibilioteca Nacional Central da Universidade de Brasília (UnB), a convite do antropólogo Darcy Ribeiro, frequentou os grandes pensadores e escritores nacionais. “Construí minhas amizades aos poucos. Nunca aceitei convites para reuniões com mais de seis pessoas”, diz, assumindo um certo esnobismo. “Aprendi a ser seletivo com Freyre. Ele rejeitava convites para disputar vaga na Academia Brasileira de Letras. Dizia que não precisou pedir para a rainha da Inglaterra conferir o título de cavaleiro comandante do Império Britânico. Por que entraria em eleição no próprio país?”.
O senhor se tornou conhecido no Brasil inteiro por conta da Universidade de Brasília, onde montou a biblioteca e o curso de biblioteconomia. Era algo planejado?
Quando deixei o Recife, em 1946, me apaixonei pelo Rio de Janeiro. Não queria morar em Brasília. Fiz concurso para a biblioteca da Câmara dos Deputados e pensei em todas as alternativas para continuar no Rio. Não consegui. Ganhei na nova capital do país uma casa que era atacada por ratos todos os dias. Por ser alérgico ao veneno para exterminá-los, adotei os gatos como solução. Cheguei a ter 20. Sou conhecido por ter a casa cheia deles até hoje. Brasília surgiu para mim a partir dali, não foi planejado. Depois vieram os amigos famosos, a Biblioteca da UnB, que virou minha vida.
Um dos amigos mais próximos na nova capital do país foi o paisagista Carlos Burle Marx, que também era homossexual. Vocês foram namorados?
Fomos muito amigos porque ele precisava visitar Brasília o tempo inteiro por conta das obras em jardins públicos. Uma companhia incrível. Sua mãe era pernambucana e o pai, alemão. Por isso, aos 16 anos, foi mandado para a Alemanha, onde estudaria canto lírico. Ele adorava fazer voz de soprano para os amigos. Mas não chegamos a namorar.
O senhor tornou-se especialista na obra de Gilberto Freyre. Deve ter alguma explicação para o apoio dele ao golpe militar de 1964.
Tenho uma teoria que desagrada um pouco a família Freyre. Ele queria ser governador de Pernambuco. Achava que poderia ser indicado pelo presidente Humberto Castelo Branco sem precisar de eleições. Gostou de ser deputado na Constituinte de 1946, ao lado de Luís Carlos Prestes, Jorge Amado e Nereu Ramos. Conhecia o Nordeste, tinha convicção que melhoraria as condições de vida na região. Não era por pura vaidade. Mas quem ficou com o cargo foi Nilo Coelho, que oferecia lagosta a Castelo Branco nos almoços de domingo em Brasília. Quando percebeu o que seria, de fato, o golpe, desistiu do apoio. Mas ficou estigmatizado como reacionário.
O senhor tem quatro pontes de safena. Não parece ter sido um homem agitado.
Ja guardei muita raiva. Hoje, sou outro. Passo os dias rezando e escutando canto gregoriano. Redescobri minha vocação monástica na maturidade. Tanto que deixei minha casa na praia, na zona Sul do Recife, para morar bem perto do Mosteiro de São Bento, em Olinda. Virei um oblato, que é um cristão que vive com fervor o evangelho. Quase um monge, mas que vive fora do claustro. Hoje, tenho dificuldades para caminhar, não posso ir à missa todos os dias. Frequento o mosteiro aos domingos porque acho impressionante a proposta dos beneditinos. Eles me ensinaram que Deus é amor. Não o senhor impiedoso que o colégio nos mostrava.

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