Onde está o rabo do gato?
Dentre o conjunto de 12 perguntas formuladas por cada "indeciso" no debate da TV Globo, parece que o que valeu mesmo foi o critério de seleção usado pela emissora do Jardim Botânico: nenhuma pergunta sobre privatização, Petrobras, banda larga, comparação entre governos...
Washington Araújo - Artigo publicado originalmente no Observatório da Imprensa
Os últimos dias da campanha eleitoral 2010 registraram coisas bem inusitadas. A começar pelo Vaticano, com o papa em pessoa, Bento 16, afirmando que é dever dos bispos católicos orientar os fiéis sobre o voto em candidatos que se oponham ao aborto. Os intelectuais logo deram um jeito de mostrar desaprovação a esta indevida intromissão do Vaticano em assuntos internos do Brasil. Afinal estamos em eleição e esta etapa final tem sido marcado pela questão do aborto, com acusações de que a candidata "matava as criancinhas" e com o bispo de Guarulhos (SP) ordenando a impressão de estupendos 20 milhões de folhetos com material eleitoral contendo discurso típico da campanha oposicionista. Mas os candidatos Dilma Rousseff e José Serra preferiram não cutucar a onça religiosa com vara curta e responderam com o clássico "Amém!"
Já na blogosfera o coral parecia mais afinado. Só que na contramão do comando papal: Bento 16 deveria utilizar seu santo tempo na consolação das milhares de vítimas de padres pedófilos em tantos países do mundo e deixar as coisas da política brasileira para os próprios brasileiros.
Outros religiosos da mesma congregação apostólica romana aconselharam no moderno Twitter que o pontífice "dedicasse um tempo a título de silêncio obsequioso". Em questão de minutos tínhamos na web fotos de José Serra beijando estatuetas de santos. E o presidente Luiz Inácio Lula da Silva dizendo que o papa apenas mostrou coerência com a posição da igreja católica, que é a de condenar o aborto.
Em São Paulo tivemos caminhada em apoio a José Serra saindo do Largo de São Francisco. Cerca de 3 mil pessoas. Mas o que os portais na internet divulgaram com vivo interesse foi que o sapato de FHC perdeu o solado. As fotos o mostravam com a perna um pouco acima do chão e o sapato escancarando a famosa boca de jacaré. Há muitos anos não via uma imagem tão inusitada e divertida envolvendo um ex-presidente da República, um dos últimos eventos deste segundo turno da campanha e um sapato literalmente em petição de miséria. No mesmo horário, no Recife, o presidente da República arrastava cortejo com estimadas 100 mil pessoas e em menos de 48 horas chorava em público por estarem se esvaindo seus dias como presidente do Brasil.
Em miúdos.
Durante toda a sexta-feira (29/10), o assunto mais comentado era o último debate a ser transmitido pela Rede Globo de Televisão em horário nobre. Formato diferente: 80 pessoas indecisas de todo o Brasil, selecionadas pelo instituto de pesquisas Ibope, fazendo perguntas sobre temas pré-agendados. Os candidatos também podiam se movimentar livremente no palco. Na função de observador da imprensa anotei o seguinte sobre os candidatos:
** Dilma Rousseff apresentou calma, conseguiu concatenar de forma lógica suas ideias, mencionou números, dados técnicos e guardou distância regulamentar de raciocínios apressados e postura agressiva. Estava como peixe em aquário familiar, tocando em diversos temas, arranhando um ou outro, mostrando maior proximidade de quem fazia a pergunta (o tal eleitor indeciso). E, finalmente, foi objetiva, direta nas respostas. Estava tão à vontade que até pilheriou, riu com o apresentador William Bonner por questão de erro da própria Globo na cronometragem de seu tempo em uma de suas últimas intervenções.
** José Serra estava livre, leve e solto. Fazia questão de mostrar forçada amizade e familiaridade com quem fazia a pergunta, carregando na pronúncia do nome. Aquele jeito de "desde sempre fomos amigos de infância". Usou muitas frases de efeito, expressou suas impressões pessoais, deu estocadas no varejo no governo atual. Pareceu estar sempre pronto a recitar slogans de campanha. Ameaçou ser agressivo, mas se conteve. Parecia temer um embate direto com a adversária. Serra foi beneficiado amplamente com as tomadas do cameraman, principalmente em sua fala final, quando a câmera fechou em close em seu rosto. Enquanto isso, o enquadramento no momento em que Dilma fazia suas considerações finais pegava sempre ela de perfil e, quando de frente, de corpo inteiro.
Trocando em miúdos: Dilma falou com plano aberto de câmera e de lado para o vídeo. Serra ficou dois minutos em close falando direto ao coração do eleitor. Como me dizia um colega professor desde os tempos do caso Proconsult, em 1982: "Meu caro, para bom entendedor..."
Retrocesso indesejado.
Essa opção de colocar "indecisos" diante de suas potenciais opções merece algumas observações. Primeiro, os indecisos parecem ter sempre o perfil daquele brasileiro desencantado com a vida, sofrido pra chuchu, desiludido com a sociedade como um todo e suas falas parecem ter início a partir do portão de sua casa. Como são perguntas lidas, ficam com aquele jeito de coisa escrita e revisada umas duas ou três vezes, adquirindo assim forma de cacoete literário. O nível das perguntas, a forma como estavam formuladas beneficiavam o estilo Dilma de comunicação – nada de muito rebuscado, se é que me entendem.
As respostas de Dilma guardavam correlação com o próprio nível das perguntas. Mas o recorrente estilo de reclamação da realidade brasileira – seja na segurança seja na saúde – beneficiava o discurso de José Serra, que ultimamente tem apresentado em seus programas eleitorais e em entrevistas o Brasil terra arrasada onde nada funciona, nada dá certo, tudo merece nota inferior a zero.
De qualquer forma, tem gente apostando o braço direito de que boa parte das perguntas foram feitas na própria redação do Jornal Nacional ou do Jornal da Globo, e não pelos "indecisos". Curioso que dentre o conjunto de 12 perguntas formuladas por cada "indeciso", parece que o que valeu mesmo foi o critério de seleção usado pela emissora do Jardim Botânico: nenhuma pergunta sobre privatização, Petrobras, disseminação da banda larga, nem cheiro de qualquer comparação entre os períodos 1995-2002 e 2003-2010.
(O leitor deve ter notado que sempre coloco entre aspas a palavra "indeciso". Faço isso porque como gato escaldado já vi gente ser apresentada como indecisa em debate do primeiro turno desta mesma eleição e, na verdade, o sujeito tinha não apenas vínculo profissional partidário como estava engajado até o pescoço na campanha de uma candidatura.) Para fechar este meu raciocínio devo destacar que, bem antes do final do debate, a câmera captou um dos "indecisos" se levantando para aplaudir a fala do candidato tucano.
Ao cabo e ao fim, considero que o melhor debate destas eleições foi aquele mediado pelo jornalista Fernando Rodrigues e promovido pelo UOL-Folha de S.Paulo. E o melhor de tudo é que os falsos temas não vieram para ficar: assim como chegaram, se foram. Seria um retrocesso imperdoável para a sociedade brasileira voltarmos a repensar a relação do Estado brasileiro com a Igreja...
Os últimos dias da campanha eleitoral 2010 registraram coisas bem inusitadas. A começar pelo Vaticano, com o papa em pessoa, Bento 16, afirmando que é dever dos bispos católicos orientar os fiéis sobre o voto em candidatos que se oponham ao aborto. Os intelectuais logo deram um jeito de mostrar desaprovação a esta indevida intromissão do Vaticano em assuntos internos do Brasil. Afinal estamos em eleição e esta etapa final tem sido marcado pela questão do aborto, com acusações de que a candidata "matava as criancinhas" e com o bispo de Guarulhos (SP) ordenando a impressão de estupendos 20 milhões de folhetos com material eleitoral contendo discurso típico da campanha oposicionista. Mas os candidatos Dilma Rousseff e José Serra preferiram não cutucar a onça religiosa com vara curta e responderam com o clássico "Amém!"
Já na blogosfera o coral parecia mais afinado. Só que na contramão do comando papal: Bento 16 deveria utilizar seu santo tempo na consolação das milhares de vítimas de padres pedófilos em tantos países do mundo e deixar as coisas da política brasileira para os próprios brasileiros.
Outros religiosos da mesma congregação apostólica romana aconselharam no moderno Twitter que o pontífice "dedicasse um tempo a título de silêncio obsequioso". Em questão de minutos tínhamos na web fotos de José Serra beijando estatuetas de santos. E o presidente Luiz Inácio Lula da Silva dizendo que o papa apenas mostrou coerência com a posição da igreja católica, que é a de condenar o aborto.
Em São Paulo tivemos caminhada em apoio a José Serra saindo do Largo de São Francisco. Cerca de 3 mil pessoas. Mas o que os portais na internet divulgaram com vivo interesse foi que o sapato de FHC perdeu o solado. As fotos o mostravam com a perna um pouco acima do chão e o sapato escancarando a famosa boca de jacaré. Há muitos anos não via uma imagem tão inusitada e divertida envolvendo um ex-presidente da República, um dos últimos eventos deste segundo turno da campanha e um sapato literalmente em petição de miséria. No mesmo horário, no Recife, o presidente da República arrastava cortejo com estimadas 100 mil pessoas e em menos de 48 horas chorava em público por estarem se esvaindo seus dias como presidente do Brasil.
Em miúdos.
Durante toda a sexta-feira (29/10), o assunto mais comentado era o último debate a ser transmitido pela Rede Globo de Televisão em horário nobre. Formato diferente: 80 pessoas indecisas de todo o Brasil, selecionadas pelo instituto de pesquisas Ibope, fazendo perguntas sobre temas pré-agendados. Os candidatos também podiam se movimentar livremente no palco. Na função de observador da imprensa anotei o seguinte sobre os candidatos:
** Dilma Rousseff apresentou calma, conseguiu concatenar de forma lógica suas ideias, mencionou números, dados técnicos e guardou distância regulamentar de raciocínios apressados e postura agressiva. Estava como peixe em aquário familiar, tocando em diversos temas, arranhando um ou outro, mostrando maior proximidade de quem fazia a pergunta (o tal eleitor indeciso). E, finalmente, foi objetiva, direta nas respostas. Estava tão à vontade que até pilheriou, riu com o apresentador William Bonner por questão de erro da própria Globo na cronometragem de seu tempo em uma de suas últimas intervenções.
** José Serra estava livre, leve e solto. Fazia questão de mostrar forçada amizade e familiaridade com quem fazia a pergunta, carregando na pronúncia do nome. Aquele jeito de "desde sempre fomos amigos de infância". Usou muitas frases de efeito, expressou suas impressões pessoais, deu estocadas no varejo no governo atual. Pareceu estar sempre pronto a recitar slogans de campanha. Ameaçou ser agressivo, mas se conteve. Parecia temer um embate direto com a adversária. Serra foi beneficiado amplamente com as tomadas do cameraman, principalmente em sua fala final, quando a câmera fechou em close em seu rosto. Enquanto isso, o enquadramento no momento em que Dilma fazia suas considerações finais pegava sempre ela de perfil e, quando de frente, de corpo inteiro.
Trocando em miúdos: Dilma falou com plano aberto de câmera e de lado para o vídeo. Serra ficou dois minutos em close falando direto ao coração do eleitor. Como me dizia um colega professor desde os tempos do caso Proconsult, em 1982: "Meu caro, para bom entendedor..."
Retrocesso indesejado.
Essa opção de colocar "indecisos" diante de suas potenciais opções merece algumas observações. Primeiro, os indecisos parecem ter sempre o perfil daquele brasileiro desencantado com a vida, sofrido pra chuchu, desiludido com a sociedade como um todo e suas falas parecem ter início a partir do portão de sua casa. Como são perguntas lidas, ficam com aquele jeito de coisa escrita e revisada umas duas ou três vezes, adquirindo assim forma de cacoete literário. O nível das perguntas, a forma como estavam formuladas beneficiavam o estilo Dilma de comunicação – nada de muito rebuscado, se é que me entendem.
As respostas de Dilma guardavam correlação com o próprio nível das perguntas. Mas o recorrente estilo de reclamação da realidade brasileira – seja na segurança seja na saúde – beneficiava o discurso de José Serra, que ultimamente tem apresentado em seus programas eleitorais e em entrevistas o Brasil terra arrasada onde nada funciona, nada dá certo, tudo merece nota inferior a zero.
De qualquer forma, tem gente apostando o braço direito de que boa parte das perguntas foram feitas na própria redação do Jornal Nacional ou do Jornal da Globo, e não pelos "indecisos". Curioso que dentre o conjunto de 12 perguntas formuladas por cada "indeciso", parece que o que valeu mesmo foi o critério de seleção usado pela emissora do Jardim Botânico: nenhuma pergunta sobre privatização, Petrobras, disseminação da banda larga, nem cheiro de qualquer comparação entre os períodos 1995-2002 e 2003-2010.
(O leitor deve ter notado que sempre coloco entre aspas a palavra "indeciso". Faço isso porque como gato escaldado já vi gente ser apresentada como indecisa em debate do primeiro turno desta mesma eleição e, na verdade, o sujeito tinha não apenas vínculo profissional partidário como estava engajado até o pescoço na campanha de uma candidatura.) Para fechar este meu raciocínio devo destacar que, bem antes do final do debate, a câmera captou um dos "indecisos" se levantando para aplaudir a fala do candidato tucano.
Ao cabo e ao fim, considero que o melhor debate destas eleições foi aquele mediado pelo jornalista Fernando Rodrigues e promovido pelo UOL-Folha de S.Paulo. E o melhor de tudo é que os falsos temas não vieram para ficar: assim como chegaram, se foram. Seria um retrocesso imperdoável para a sociedade brasileira voltarmos a repensar a relação do Estado brasileiro com a Igreja...
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