quinta-feira, 26 de agosto de 2010

A LÍNGUA DOS TÍTULOS

PASQUALE CIPRO NETO.
Pode ter ocorrido aí o que chamamos de cruzamento (o redator usou "culpar" com a regência de "atribuir")
O LEITOR HABITUAL deste espaço sabe que volta e meia escrevo duas palavras sobre preciosidades perpetradas pelos meios de comunicação. Esse leitor sabe também que o que menos me importa quando faço esse tipo de análise é a questão do "erro" (um cochilo na concordância, por exemplo, é muito menos importante que uma combinação esdrúxula das palavras ou uma regência forçada, que faz valer a máxima do "título bom é título que cabe").
Posto isso, vamos a uma construção, desencavada do meu arquivo de pérolas. Aliás, há tempos quero comentar o caso -um título publicado neste ano, depois do terremoto no Haiti. Lá vai: "Cônsul do Haiti no Brasil diz que desgraça "é boa" e culpa terremoto à religião". Elaiá! Culpa terremoto à religião? Em que língua? Será que a intenção não era dizer "culpa a religião pelo terremoto" ou "atribui o terremoto à religião"?
Pode ter ocorrido aí o que chamamos de cruzamento (o redator empregou o verbo "culpar" com a regência de "atribuir"). O problema é que não sabemos se o redator fez mesmo esse cruzamento mental ou se, depois de redigir adequadamente (com o verbo "atribuir"), deu-se conta de que a frase não cabia e... E, como "culpa" é menor do que "atribui", "título bom é título que cabe".
Alguns redatores têm verdadeira fissura pela preposição "a". A fissura é tanta que parece que sempre dão um jeito de entortar a frase o mais que podem para que nela caiba um mágico "a", regido sabe Deus por que termo. Salvo engano, nenhum falante de português um belo dia disse algo como "Ele culpou o atraso ao trânsito" ou "O prefeito culpou o alagamento à sujeira nos bueiros". Ou será que disse?
O caro leitor notou também que, quanto ao artigo, os substantivos "terremoto" e "religião" receberam tratamento distinto? Releia o título: "...culpa terremoto à religião". Sabemos que títulos jornalísticos não começam com artigo. No meio da frase, a história muda -cada caso é um caso. Como exemplos, vejamos estes títulos da Folha (edição de terça): "EUA investigam a Universal por remessa ilegal de R$ 420 mi" (capa); "EUA investigam Universal por remessas de..." (página interna); "Justiça invalida provas obtidas pela PF contra filho de Sarney".
Como se vê, o artigo definido é figura "instável"; aparece de acordo com a conveniência etc. O fato é que, quando chega a hora de colocar (ou não) o bendito acento grave (acento indicador de crase)... Que fazer? Bem, o caso é um tanto complexo e merece um texto específico. Por enquanto, chamo a atenção para as minhas reescrituras do título: "...culpa a religião pelo terremoto"; "...atribui o terremoto à religião".
Como se vê, optei pelo artigo antes dos dois substantivos, o que se pode explicar mais ou menos pelo seguinte: o terremoto era mais do que conhecido (acabara de acontecer e tivera imensa repercussão), fato que justifica plenamente a presença do artigo; o termo "religião" é tomado em seu sentido amplo, como conceito único, universal.
Razões (ou não) à parte para o uso (ou não) do artigo definido, o fato é que não parece haver motivo forte o bastante para que o paralelismo tenha ficado de lado, ou seja, para o emprego do artigo apenas antes de um dos substantivos.
Cá entre nós, caro leitor, confesso que o emprego do artigo definido no "titulês" é mesmo um grande mistério. Depois de anos e anos de tratos diretos a essa bola, cheguei à conclusão de que... É tudo um grande mistério. Quer um conselho? Em se tratando do emprego da preposição "a" e dos artigos definidos, não leve os títulos muito a sério. É isso.

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