segunda-feira, 7 de junho de 2010

EU ME ARREPENDO, ATE HOJE.

CHUPADO DO Jornal do Brasil.
Mauro Santayana,
Itamar Franco e o poder da simplicidade.
Quando assumiu a Presidência da República, durante o afastamento compulsório do titular, Fernando Collor – que seria definitivo meses depois, com o impeachment – Itamar Franco surpreendeu as elites,
representadas pelos principais veículos de comunicação do país. Seu ministério foi tachado de “governo de compadres”, e “República do Pão de Queijo”. A resposta de Itamar foi uma pergunta, quase inocente: “As pessoas simples não podem governar?” Meses depois, o senador Antonio Carlos Magalhães pediu-lhe uma audiência. Queria fazer “graves revelações” contra Jutahy Magalhães Júnior, seu ex-aliado e então desafeto na Bahia, que ocupava o cargo de ministro de Bem-estar Social. Ao ser introduzido no gabinete, na hora marcada, Antonio Carlos encontrou todos os jornalistas credenciados no Planalto, com seus fotógrafos e as câmeras de televisão. Diante do espanto e constrangimento do Senador, Itamar explicou:
Como o senhor me disse que faria uma denúncia, achei conveniente que a fizesse à nação inteira. O senhor pode apresentá-la diretamente aos jornalistas.
Modéstia.
Antonio Carlos engoliu em seco. Seu “dossiê” era constituído de recortes de jornais, que nada provavam contra Jutahy. Ao minimizar a importância do episódio, que alguns atribuíram à sua astúcia de mineiro, Itamar confessou, modesto:
Eu, astuto? Eu sou até meio bobo.
A República do Pão de Queijo pode ter sido, para o desdém de seus críticos, a república do pão, pão; queijo, queijo; orientada pelo pensamento óbvio, pelo senso comum. Mas é provável que Itamar tenha sido realmente ingênuo, ao deslumbrar-se pela retórica professoral do sociólogo Fernando Henrique Cardoso e fazer dele seu sucessor. Itamar relembra o episódio:
– O nome de Fernando Henrique surgiu por exclusão. Diante da pressão dos fatos, que me levaram a aceitar a demissão do ministro Eliseu Resende, desloquei Fernando Henrique do ministério de Relações Exteriores e o nomeei para a Fazenda. A partir de então, seu protagonismo foi natural. Mas, naquele
momento, eu pensava, e pensava firmemente, em dar a José Aparecido de Oliveira visibilidade que o credenciasse à sucessão. Aparecido – tal como hoje ocorre ao presidente Lula – se revelara excepcional diplomata, à frente de nossa embaixada em Lisboa. Coube-lhe articular, com grande sacrifício pessoal, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Teve que vencer a resistência de certos setores lusitanos, que não queriam dividir, com o Brasil, a influência sobre as suas antigas colônias. Com o apoio de Mário Soares, Aparecido partiu para a segunda etapa: a de convencer os novos países que podiam confiar na CPLP, porque a presença brasileira neutralizava a suspeita, natural, de que a instituição viesse a ser instrumento de novo colonialismo. Foi assim que, sem linhas aéreas regulares, que lhe possibilitassem as viagens sucessivas e rápidas pelo continente africano, Aparecido teve que se deslocar de um país para outro em aviões monomotores. O Brasil deve também ao Aparecido a oportunidade de hoje estar presente na Ásia: ele nos revelou a existência de Timor-Leste e incluiu essa realidade em nossa política externa. Eu não tive dúvida em convidá-lo para ocupar a Secretaria de Estado. Os elitistas do Itamaraty se levantaram contra a indicação, mas eu não recuaria. Quem recuou foi o próprio Aparecido, e com razões ponderáveis: estava enfermo, sujeito a uma cirurgia arriscada e, com sua sensibilidade, entendeu que não teria condições para ocupar o cargo. Foi então que – e mais uma vez eu lhe louvo a perspicácia diplomática – ele me sugeriu o nome do embaixador Celso Amorim. Acatei, com prazer, a sugestão. Em primeiro lugar porque, não podendo contar com Aparecido, era mais razoável que me valesse de um quadro do Itamaraty, para servir-me no curto mandato que me restava. Além da recomendação de Aparecido, tive outras referências que confortaram a minha escolha. Quanto à sucessão, o nome de Aparecido se tornou inviável pela enfermidade. Optei então pelo jornalista Antonio Brito, que se destacara como ministro da Previdência e estava à frente das pesquisas. Brito declinou: era muito jovem, e preferia governar o Rio Grande do Sul. Fernando Henrique era a terceira opção.
Elogios a Amorim e à política externa.
Já que falamos em diplomacia – e Itamar foi embaixador em Portugal, na OEA e na Itália – conversamos algum tempo sobre a política externa de Lula. Itamar sorri: ele se sente parceiro de seus êxitos, uma vez que lhe coube levar Amorim para a chancelaria.
– Senti-me homenageado quando, na presença do embaixador Amorim, em uma recepção na Embaixada do Brasil no Vaticano, o presidente Lula me disse que o havia convocado para a chefia do Itamaraty por ele ter sido meu chanceler. É claro que Lula me fazia um afago político, e que a razão da escolha não fora só a nomeação de Amorim pelo meu governo, mas, de qualquer forma, eu dera ao diplomata de Santos a chance de revelar-se como um dos mais importantes negociadores internacionais de nosso tempo. Só tenho a lamentar que Amorim tenha ido a Juiz de Fora participar de um comício em favor da candidatura de Nilmário Miranda, do PT, com Lula, e ao lado de Newton Cardoso, contra a reeleição de Aécio. Um ministro de Relações Exteriores não deveria intervir em disputa regional, e muito menos na cidade natal de quem nele confiara a execução da política externa brasileira.
Magalhães Pinto, que era político, nunca fez isso. Esse episódio, que me entristeceu profundamente, não diminui a admiração pelo grande diplomata que ele é.
Comento com Itamar curiosa circunstância histórica. Celso Amorim é de Santos, e em Santos nasceram dois dos mais importantes diplomatas brasileiros, decisivos em momentos cruciais da nacionalidade. O primeiro foi Alexandre de Gusmão, que deu ao Brasil os seus limites continentais, com o Tratado de Madri, de 1750, em que se reconheceu o princípio do utis possidetis que legitima a posse de fato.
O segundo foi José Bonifácio de Andrada, o primeiro-ministro de Relações Exteriores do Brasil.
Continuando na política externa, Itamar faz pequeno reparo a Celso Amorim:
– O ministro disse que, para não ter direito a um voto independente, é melhor não fazer parte do Conselho de Segurança da ONU. No meu entendimento, trata-se de falsa questão. A nação que faz parte do Conselho tem a liberdade de votar como quiser, de acordo com seus princípios e interesses e em favor da paz mundial. O que deve ser contestado é o ainda poder de veto exclusivo aos cinco países que são membros permanentes do órgão. O Brasil sempre teve direito, pelas suas dimensões geográficas e pela sua formação histórica, a participar do Conselho de Segurança. Em 1926, com forte presença na Liga das Nações, teve a sua candidatura, como membro efetivo do Conselho das Nações, preterida em favor da Alemanha – da mesma Alemanha que fora derrotada em 1918. Como era nosso presidente o grande estadista mineiro Artur Bernardes, e seu representante na Liga outro invulgar homem de Estado, também mineiro, o embaixador Afrânio de Mello Franco, o Brasil preferiu a honra e abandonou a Liga, que se revelara instrumento dócil do eurocentrismo. Um país que defendera, com Rui, em Haia, a plena igualdade entre as nações, não poderia compactuar com a ditadura dos grandes.
Itamar Franco e o nacionalismo como defesa.

A referência ao episódio de há 84 anos e a Artur Bernardes nos leva ao sentimento nacionalista dos mineiros. Itamar não é apologista radical da mineiridade, ainda que sempre se valha de uma frase forte, a de que ninguém nivelará as montanhas de Minas. Ele pondera que o nacionalismo está presente em todos os estados brasileiros, em maior ou menor expressão, mas reconhece que as circunstâncias históricas acentuaram essa consciência de defesa da soberania em Minas.
Falamos durante algum tempo sobre essas circunstâncias. A primeira delas foi a descoberta do ouro, e a promessa de riqueza e potência que o metal sugere. Em um primeiro momento, o ouro atrai a ambição de enriquecimento pessoal. Depois, esse sentimento passa a ser coletivo: para proteger o direito de cada um, é preciso proteger o de todos. Foi assim que os mineiros criaram o Estado dos Emboabas, contra a pretensão dos paulistas de expulsarem os recém-chegados da Bahia, das capitanias do Nordeste e da Europa. Ao expelir os paulistas das minas centrais, os emboabas fundaram o pensamento nacionalista dos mineiros, que se afirmaria contra o Conde de Assumar, em 1720, no martírio de Filipe dos Santos, e na Conjuração de 1789, chefiada por Tiradentes.
Sentimento
– A minha tese é de que coube aos mineiros despertar esse sentimento nos demais brasileiros, o de que o nacionalismo é a união entre a ideia da dignidade e da defesa da riqueza que coube, pela natureza, à geografia de cada nação. É certo que a dignidade dos povos é mais importante do que seus bens: uma nação pode ser honrada, ainda que pobre. Mas a cobiça internacional se dirige aos recursos naturais. O nacionalismo deve ser instrumento de defesa e resistência, jamais estímulo à conquista, como ocorreu com a Alemanha de Hitler.
A conversa nos leva à experiência diplomática de Itamar, e ele acredita que ela foi mais importante na representação do Brasil junto à Organização dos Estados Americanos. O fato de se tratar de órgão multilateral possibilitou-lhe contato com personalidades de todo o continente e lhe confirmou a divergência de fundo entre a América Latina e os Estados Unidos. Na OEA, Itamar atuou com a independência de sua autoridade política. Foi assim que fez veemente discurso contra a existência do centro de treinamento de militares latino-americanos, que existira antes no Panamá, e fora transferida para os Estados Unidos, a conhecida Escola das Americas. Itamar citou o secretário de Defesa dos Estados Unidos de então, William Perry, que considerou “totalmente inaceitáveis” os manuais de instrução da Escola. O órgão continua funcionando em Fort Benning, nos Estados Unidos, mas sob pressão crescente para seu fechamento. Hoje, a escola quase se limita a treinar militares colombianos.
Críticas
O pronunciamento foi criticado por alguns embaixadores, pelo fato de que o Itamaraty não fora consultado previamente, e porque envolvia as relações bilaterais entre Brasília e Washington. Itamar não se defende, ataca: um ex-presidente da República – e isso já ocorrera a Campos Salles, quando enviado à Argentina – dispõe de mandato ético e político para defender os interesses brasileiros, conforme sua consciência e convicção.
Itamar Franco diz que Plano Real nada tinha de original.

Há uma coisa que aborrece particularmente o ex-presidente: a memória seletiva de alguns homens públicos sobre a sua administração. Ele se refere a pontos importantes, começando pelo Plano Real. O plano nada tinha de original, baseado que foi no Plano Schacht, da Alemanha dos anos 20, e já um pouco adaptado – sem êxito – pelos argentinos, com o Plano Austral. Itamar lembra que só o aprovou depois de conferir os seus números, trabalhando várias horas nisso. Como engenheiro, e bom conhecedor de matemática, corrigiu alguns de seus itens, antes de aprová-lo e correr todos os riscos políticos da decisão. Da mesma forma, Itamar lembra que os medicamentos genéricos foram adotados pelo seu ministro da Saúde, o médico Jamil Haddad, com sua aprovação, apesar da resistência dos laboratórios. Embora fosse reivindicação de médicos brasileiros, o SUS começou a ser implantado pelo médico Carlos Mosconi, presidente do Inamps em seu governo. Hoje – e Itamar usa o advérbio “despudoradamente” – tais êxitos são atribuídos ao governo de seu sucessor.
– Desde que entrei para a política, em Juiz de Fora, sempre entendi que o Estado existe para impor aos poderosos o respeito aos cidadãos, qualquer que seja a sua posição na sociedade. Mais do que isso, sempre acreditei que o poder político deve buscar a igualdade de todos, diante da lei e das oportunidades da vida. Assim agi quando, por duas vezes, fui prefeito de minha cidade. E só fui atraído para a política porque, como engenheiro do DNOS, tomei conhecimento da vida difícil das populações periféricas. Até hoje creio que o saneamento básico é uma das principais tarefas do poder público. Na mesma época, juntamente com meu colega Nicolau Kleijorge, dei aulas de matemática e conhecimentos gerais aos trabalhadores de Juiz de Fora. No Senado, para onde fui eleito pela primeira vez em 1974, naquela memorável manifestação de inconformismo de nosso povo, quando o MDB não era o PMDB de hoje, mantive a mesma postura, a de que o mercado deve estar sob o controle do Estado, servidor da sociedade, e não o contrário. Resisti ao projeto neoliberal que se iniciara no governo Collor, e não concordei com a privatização de setores estratégicos, como os da energia e das telecomunicações. Da mesma forma cortei, pela raiz, o projeto da equipe econômica, de privatizar o Banco do Brasil e a Caixa Econômica. Outros fatos foram lembrados na conversa, como a redução da dívida pública e a aprovação excepcional de seu governo, de acordo com pesquisas de opinião, alem de seu plano de combate à fome, dirigido por dom Mauro Morelli.
Aécio, com generosa amizade, citou meu nome
O ex-presidente lembra a luta que teve, ao assumir o governo de Minas, em 1999, a fim de organizar as finanças do estado. Ao decretar a moratória – uma vez que os presos e os enfermos de alguns hospitais públicos estavam ameaçados de morrer de inanição, por falta de comida – o mundo desabou sobre ele. Logo depois, coube-lhe resistir, manu militari, à anunciada privatização de Furnas, situada em território mineiro. Isso sem falar na Cemig.
– Não quero lembrar os nomes dos responsáveis, mas estávamos reféns, na administração da Cemig, de investidores estrangeiros, que haviam obtido, por alguns 30 dinheiros, o controle operacional da empresa. A minha resistência e a atuação do governador Aécio Neves nos libertaram desse conluio dissimulado em acordo de acionistas. Nestes últimos 10 anos – dois dos quais sob meu governo – a Cemig valorizou-se em 400%. Ela se tornou, nesse período, a empresa energética de maior sustentabilidade no mundo, de acordo com a Bolsa de Nova York.
Entramos na atualidade política. Itamar diz que sua prioridade é a sucessão em Minas. Não cita o nome, porque não é necessário citá-lo em Minas, mas se declara disposto a lutar para que o governo não seja entregue a alguém não confiável. Pergunto-lhe sobre os rumores de que poderia vir a ocupar a chapa da oposição como candidato à Vice-Presidência:
– O governador Aécio Neves, com sua generosa amizade, citou meu nome como apto a compor a chapa da oposição. Pertenço, hoje, ao PPS. Sei que se tratou de homenagem a um amigo. Mesmo assim, rejeitaram essa hipótese, como se fosse postulação minha. Não sou candidato àquele cargo. Não insinuei essa possibilidade, mas a recusa ao meu nome robustece a decisão de agir, no pleito, conforme a minha consciência, sem qualquer constrangimento político. Não é Itamar que deve influir na sucessão. São as razões de Minas que terão de ser respeitadas. E as razões de Minas são as razões do Brasil. Em qualquer lugar do Brasil há “mineiros”, isto é, honrados patriotas, que colocam, acima dos interesses regionais, a soberania do país e o bem-estar de nosso povo.

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