quinta-feira, 8 de julho de 2010

A CRUELDADE

ROSANA HERMANN - BLOG Querido Leitor
Não julgarás a moral alheia.
Moral deveria ser uma palavra boa. Está ligada ao espírito ético, à boa conduta, ao comportamento civilizado. Mas a moral, por assim dizer, perdeu a moral com a galera. Por causa de seu derivativo 'moralista', a imagem de quem fala sobre moral é sempre associada a uma coisa retrógrada, má, julgadora. Se 'moral' fosse uma pessoa, a figura caricata seria de uma mulher madura, enfezada, assexuada e cruel, como as personagens estereotipadas das diretoras malvadas das escolas fundamentais dos filmes.
No momento, a diretora cruel que representa a moral volta às notícias de primeira página para julgar e punir a todos, principalmente, as vítimas.
Eliza Samudio está desaparecida e tudo aponta para um assassinato, talvez mais um caso de violência passional que termina em crime contra uma mulher. Eliza, portanto, seria a vítima.
Ao mesmo tempo que os profissionais buscam provas, indícios e testemunhas para encontrar Eliza, uma onda de fotos, fatos, boatos e vídeos sobre a vida e conduta da jovem circula livremente pela rede.
Eu, que sou como todo mundo, também me envolvo com as coisas que vejo. Cada imagem, cada texto, vai gerando um novo sentimento em mim. A amiga, o bebê, o goleiro, a mulher do goleiro, as fotos de Eliza grávida, vão se somando numa gaveta do meu cérebro, onde acompanho e arquivo o caso que salta aos nossos olhos nas manchetes. A tatuagem ressaltada no círculo vermelho que mostra que aquele corpo numa pose sexual, o mesmo da gestante da outra foto, me faz sentir uma certa repulsa por quem fez a comparação. O vídeo sexy, o outro mais sensual e o link para um vídeo pornô, me dão uma dor muito grande na alma. Não tenho vontade de ver, nem clico no link. Sinto só uma vontade de chorar.
Porém, independentemente das reações que cada informação ou imagem me causem num primeiro momento, eu sou um ser humano que sente E pensa. E não importa o que Eliza tenha feito em sua vida, nada justificaria ser assassinada, caso isso tenha acontecido. Como disse o pai de Eliza, não interessa o que ela fazia. É preciso saber o que aconteceu com ela. E se aconteceu o pior, quem cometeu o crime.
Porque os crimes passionais existem, sim. A violência contra a mulher existe e muito. Existe também a prostituição, a pornografia, o mercado de filmes adultos. Existe a miséria, a ambição, o poder, o deslumbramento, a ilusão. Existem homens cruéis. Existem marias-chuteira. Existe inveja, raiva, crueldade, moralismo, crianças órfãs, pais que perdem seus filhos. E existe a hipocrisia.
Hipocrisia, palavra desconhecida em sua forma ortográfica tanto quanto em seu conteúdo etimológico.
Hipocrisia vem do grego (fui ver no Houaiss) hupokrisía e hupókrisis e quer dizer 'desempenhar um papel, representar, fingir, dissimular'. Fingir é não ser verdadeiro.
Em última instância, sempre que julgamos alguém por sua conduta de vida estamos sendo hipócritas. Porque se vasculharmos os arquivos da nossa própria vida, ou das pessoas do nosso círculo familiar, certamente vamos encontrar coisas que nos desabonariam perante a 'moral' pública. Coisas que não gostaríamos que fossem reveladas ao mundo sem o nosso consentimento. Coisas que ninguém deveria usar contra nós, se estivéssemos numa posição indefesa. Ou se não estivéssemos sequer vivos para exercermos nosso direito de resposta.
É humano sentir o impulso de julgar alguém, de reagir a uma imagem que foge ao nosso cotidiano.
Mas o digno é pegar o impulso, jogá-lo fora e lutar para que o criminoso seja encontrado e punido.
Porque culpar a vítima é ser cúmplice do criminoso.
Não, você não é culpado por ver arquivos na Internet.
A Internet tem que ser sempre livre.
Quem não pode ficar livre é o assassino.
Isso sim seria totalmente imoral.

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