A revolução não caiu do céu. Os protestos e as campanhas políticas se construíram ao longo da última década. Muitos citam as manifestações dos egípcios contra a invasão anglo-americana do Iraque em 2003 como um acontecimento divisor de águas. Em 2006, houve demonstrações massivas de solidariedade ao Líbano durante o ataque de Israel. E dois anos mais tarde, em solidariedade com Gaza. Essas manifestações criticavam diretamente a política externa de Mubarak. Agora, egípcios tiveram a coragem de enfrentar e derrubar uma força policial violenta.
Amira Hass - Haaretz.
Amira Hass é jornalista israelense, colunista do Haaretz. Tradução: Katarina Peixoto.
"Eu sabia que tinha de documentar cada momento da revolução, mas eu quis vivê-lo, não observá-lo. Agora é difícil para mim lembrar o que aconteceu, é como tivesse se passado há dez anos, não há duas ou três semanas”, disse M., um ativista e professor experiente de ciências sociais numa universidade egípcia. Todo mundo tem um momento em que ele ou ela entende que não há volta. Esses momentos vieram de novo à tona nas conversas que seguem.
O momento de M., por exemplo, veio quando sua filha de 5 anos entoou uma canção que dizia: “O povo quer o fim do regime” – e ficou a repetindo. Nos primeiros dois ou três dias de manifestações, M. pediu a sua filha para não cantar esse slogan fora de casa. Os membros do aparato de segurança estatal, ativistas do partido político da situação – não se sabia quem poderia escutar e machucá-la.
“Nas últimas décadas houve vários protestos populares de várias formas”, observa M., “mas com a demonstração de 25 de janeiro eu senti que havia uma mudança quantitativa clara”.
Ora, nas palavras do Professor Khaled Fahmy, chefe do departamento de história da Universidade Americana do Cairo: “De repente, não são 500 manifestantes cercados por 5 000 policiais; de repente estamos em maior número que eles e sabemos que isso está acontecendo em outros lugares, ao mesmo tempo”.
Ainda assim, M. preferiu que sua filha confinasse sua subversão verbal ao ambiente seguro de casa. Mas em 28 de janeiro, a primeira sexta-feira de manifestações, diz M., “Eu me dei conta de que a mudança era qualitativa, não só quantitativa”. Não havia mais necessidade de censurar a pequena.
“Há momentos inequívocos: o pânico da polícia, a coragem dos manifestantes”, explica Fahmy. “Nessa sexta a polícia bateu em retirada – na verdade, só por meia hora, e então retornaram com reforço – mas foi um sentimento maravilhoso. Nós os empurramos de volta à Ponte Galaa. Esta é uma das muitas ironias: "galaa" significa evacuação, e neste caso se refere à expulsão dos britânicos em 1954. E agora somos nós que estamos empurrando a polícia egípcia. Eu estava debaixo da ponte; um amigo jornalista viu a partir de um alto edifício o que não pude ver: coluna após coluna de policiais em retirada, enquanto nós, os cidadãos, pressionávamo-los adiante. ‘Eu tinha lágrimas nos meus olhos, comecei a chorar’, ele me disse”.
A revolução não caiu do céu. Os protestos e as campanhas políticas se construíram ao longo da última década. Muitos citam as manifestações dos egípcios contra a invasão anglo-americana do Iraque em 2003 como um acontecimento divisor de águas. “Éramos 20.000 e parecia que havia um número imenso dos nossos”, S., 31, um militante dos direitos humanos lembra, com um sorriso. “Aquela também foi a primeira vez que o povo denunciou Hosni Mubarak."
O movimento pró-democracia Kefaya (Chega) impulsionou essas demonstrações, relata S. Mesmo que sua força tenha diminuído desde a sua fundação, ao longo do tempo surgiram outros grupos de jovens. As eleições presidenciais de 2005 e as eleições parlamentares de 2010, ambas antidemocráticas e eivadas de
O momento de M., por exemplo, veio quando sua filha de 5 anos entoou uma canção que dizia: “O povo quer o fim do regime” – e ficou a repetindo. Nos primeiros dois ou três dias de manifestações, M. pediu a sua filha para não cantar esse slogan fora de casa. Os membros do aparato de segurança estatal, ativistas do partido político da situação – não se sabia quem poderia escutar e machucá-la.
“Nas últimas décadas houve vários protestos populares de várias formas”, observa M., “mas com a demonstração de 25 de janeiro eu senti que havia uma mudança quantitativa clara”.
Ora, nas palavras do Professor Khaled Fahmy, chefe do departamento de história da Universidade Americana do Cairo: “De repente, não são 500 manifestantes cercados por 5 000 policiais; de repente estamos em maior número que eles e sabemos que isso está acontecendo em outros lugares, ao mesmo tempo”.
Ainda assim, M. preferiu que sua filha confinasse sua subversão verbal ao ambiente seguro de casa. Mas em 28 de janeiro, a primeira sexta-feira de manifestações, diz M., “Eu me dei conta de que a mudança era qualitativa, não só quantitativa”. Não havia mais necessidade de censurar a pequena.
“Há momentos inequívocos: o pânico da polícia, a coragem dos manifestantes”, explica Fahmy. “Nessa sexta a polícia bateu em retirada – na verdade, só por meia hora, e então retornaram com reforço – mas foi um sentimento maravilhoso. Nós os empurramos de volta à Ponte Galaa. Esta é uma das muitas ironias: "galaa" significa evacuação, e neste caso se refere à expulsão dos britânicos em 1954. E agora somos nós que estamos empurrando a polícia egípcia. Eu estava debaixo da ponte; um amigo jornalista viu a partir de um alto edifício o que não pude ver: coluna após coluna de policiais em retirada, enquanto nós, os cidadãos, pressionávamo-los adiante. ‘Eu tinha lágrimas nos meus olhos, comecei a chorar’, ele me disse”.
A revolução não caiu do céu. Os protestos e as campanhas políticas se construíram ao longo da última década. Muitos citam as manifestações dos egípcios contra a invasão anglo-americana do Iraque em 2003 como um acontecimento divisor de águas. “Éramos 20.000 e parecia que havia um número imenso dos nossos”, S., 31, um militante dos direitos humanos lembra, com um sorriso. “Aquela também foi a primeira vez que o povo denunciou Hosni Mubarak."
O movimento pró-democracia Kefaya (Chega) impulsionou essas demonstrações, relata S. Mesmo que sua força tenha diminuído desde a sua fundação, ao longo do tempo surgiram outros grupos de jovens. As eleições presidenciais de 2005 e as eleições parlamentares de 2010, ambas antidemocráticas e eivadas de
fraude e de práticas desonestas levaram os ativistas para as ruas. As eleições do ano passado deixaram S. se sentindo frustrado e desesperançado. No entanto, a juventude trouxe encorajamento, porque o sistema tinha sido exposto em toda a sua feiura.
Em 2006, houve demonstrações massivas de solidariedade ao Líbano durante o ataque de Israel. E dois anos mais tarde, em solidariedade com Gaza. Essas manifestações criticavam diretamente a política externa de Mubarak.
D., uma artista de 49 anos, diz que é uma das pessoas “que sempre se manifestou ao longo dos últimos 30 anos, mas sentia uma frustração constante”. As manifestações “eram conduzidas como um ritual: a praça escolhida, a polícia em volta, um punhado de manifestantes marchando em direção à polícia e sendo presas. Não havia tentativa de mudar o estilo, nenhuma imaginação”.
A primeira vez que ela notou uma mudança foi em 2003, quando os manifestantes conseguiram confundir a polícia. Eles anunciaram que estariam se encontrando na mesquista de Al-Azhar, mas estavam simultaneamente em várias mesquitas. A criatividade que começou a se desenvolver na última década amadureceu e virou as manifestações na Praça Tahrir.
Valentia crescente
O evento determinante mais recente ocorreu em 6 de junho de 2010. Um jovem chamado Khaled Said estava sentado num cybercafé e dois policiais entraram e lhe pediram dinheiro. Ele disse que não tinha. Eles o espancaram até a morte.
“Assassinatos similares aconteceram antes”, explica D. “Não está claro porque esse caso particular mobilizou tanta raiva. Não foi o espancamento em si, mas o fato de que a polícia poderia aparecer e assalta-lo, dizendo que você era culpado de algo e não serem punidos por isso. Um grupo no Facebook foi criado com o nome ‘Somos todos Khaled Said’. Agora há 800 000 membros neste grupo. Mais tarde, as pessoas tomaram coragem de irem para as margens do Nilo e para a beira-mar, em sua memória. A instrução era vestir preto e permanecer em silêncio. Não era para ser uma demonstração e portanto não seria dispersa. Não era para ficarmos num único lugar, mas para nos espalharmos e ganharmos visibilidade”.
As pessoas compareceram, entre elas D. e suas amigas. Não havia muitas delas, mas causaram impacto. Mais tarde, protestos similares ocorreram.
Diz-se que a Revolução da Praça Tahrir foi fomentada pela classe média e pelos trabalhadores em situação privilegiada. Mas muitos dos ativistas atribuem sua experiência e coragem em parte às greves dos trabalhadores, que se espalharam em 1998.
“O projeto de reestruturação econômica neoliberal [no Egito] está sendo levado a cabo desde 1991. O crescimento da economia tem sido impressionante... A classe média alta e as elites prosperaram. Mas houve muito pouca distribuição de renda”, escreveu Joel Beinin, historiador da Universidade de Stanford, em 31, no Foreign Policy . “De acordo com o Banco Mundial, mais de 40% dos egípcios vivem próximos à linha de pobreza. O preço dos alimentos disparou. Consequentemente, os salários da maior parte dos trabalhadores é insuficiente para sustentar suas famílias”.
Os cortes no orçamento dos serviços públicos destruíram a rede de proteção social criada pelo regime populista-autoritário de Nasser. “O que restou foi uma cleptocracia autoritária”, escreveu Beinin.
'Conjecturas reacionárias’
A onda de greves que atingiram o pico em 2004, se seguiram à instalação do “governo do homem de negócios”, naquele julho. “Mais de 2 milhões de trabalhadores participaram e mais de 3 000 ações coletivas nesse período”, de acordo com Beinin.
O governo atendeu a uma parte substancial das exigências, esperando assim evitar que questões econômicas se tornassem luta política.
Um resultado desses acontecimentos foi a formação de duas centrais sindicais independentes, dos trabalhadores da construção civil, em 2008 e dos técnicos em saúde, em dezembro de 2010. O governo também foi forçado a quadruplicar o salário mínimo mensal para 400 libras egípcias.
Em 30 de janeiro, em plena revolução na Praça Tahrir, as duas centrais independentes e representativas de algo como quase uma dúzia de cidades industriais declarou sua intenção de estabelecer uma federação geral do trabalho, separada da atual federação do governo. De acordo com a lei egípcia, o estabelecimento de uma central sindical independente, baseada num movimento popular (e não numa diretiva governamental) é ilegal, observou Beinin.
“Os intelectuais egípcios são propensos a conjeturas reacionárias”, afirma o prof. Fahmy. “Eles confirmam o comentário do geógrafo Gamal Hamdan a respeito da suposição de que os egípcios são dóceis. Mesmo os esquerdistas questionam por que os egípcios não se revoltam. Eu respondo dizendo que houve muitos levantes nos últimos 200 anos, mas os livros de história não os mencionam, ostensivamente porque fracassaram, mas na verdade porque voltavam-se contra tiranos locais, não opressores externos”.
De fato, em 1821 houve uma revolta de grande escala no Alto Egito, contra o alistamento obrigatório, introduzido pelo dirigente político da época, Muhammad Ali, e contra a taxação e o governo locais. Aproximadamente 20 000 pessoas tomaram parte na revolta, num período em que a população do Egito era de 2,5 milhões. Quatro mil pessoas foram mortas na supressão dessa revolta.
Fahmy cita uma longa lista de levantes similares ao longo do século XIX. Ele pesquisou o exército egípcio nessa época e atualmente está estudando a história da tortura no seu país. Essa é a sua maneira de mostrar que o estado não apenas controla os cidadãos, mas também invade seus corpos. Nos arquivos da polícia ele encontrou uma série valiosa de testemunhos assombrosos das famílias que pediam que a morte dos seus entes fossem investigadas e os torturadores, punidos.
“Famílias da zona rural, iletrados e pobres insistiam para que as autópsias fossem feitas, a fim de que se provasse que a morte não tinha sido por causas naturais, mesmo sendo a autópsia contrária aos seus costumes religiosos e tradicionais”, disse.
Em 1857, um proprietário de terras próximo à família que comandava o país sentenciou um escravo negro a 1500 chibatadas por ter ido ao Cairo sem permissão. Os companheiros desse escravo protocolaram uma reclamação contra esse proprietário, que foi expulso do país como punição. Em 2006, 150 anos depois, um menino de 8 anos de uma pequena vila no Delta furtou uma caixa de fósforos de um mercadinho. Preso por roubo, ele foi espancado numa delegacia de polícia e depois caiu numa rua do Cairo. Por muita sorte, um motorista da vila encontrou o menino e o levou para a sua mãe. Os médicos no hospital disseram que não poderiam salvá-lo, mas filmar suas últimas horas. A mãe da criança, uma campesina analfabeta, pediu que o corpo de seu filho fosse exumado para uma autópsia. Ela enviou petições repetidas vezes a várias autoridades - a última ao próprio presidente Mubarak. Ninguém prestou atenção.
“No século XIX esse tipo de pedido era atendido; havia um sistema judicial receptivo”, diz Fahmy, com raiva. “Esse é o legado de Mubarak: o que ele conseguiu fazer foi minar as instituições do estado – inclusive o sistema judicial – e a moralidade”.
Fahmy diz que é por isso que o caso de Khaled Said é tão importante para entender o levante. O estado diz que Said foi morto por causa de drogas. A família pediu uma autópsia. “Não é só o fato de que ele foi espancado até a morte, é uma questão de a quem pertence o corpo”, diz Fahmy. “O estado diz ter propriedade, mas o povo diz ‘é o nosso corpo’”. Centenas de milhares de jovens egípcios identificam-se com esse caso, porque eles sentiram na pele essa realidade.
Os dois policiais suspeitos de assassinarem Said foram presos, mas escaparam da cela durante as manifestações. Anos de violência policial engendraram um poderoso ódio pelas forças de segurança. Por isso que a contenção demonstrada pelos manifestantes frente à polícia nas últimas semanas é duplamente interessante. Fahmy testemunhou dois exemplos nos quais policiais que atravessavam uma manifestação foram quase linchados. Em ambos os casos foi suficiente alguém dizer “silmiye” (quer dizer, não pela violência, por meios pacíficos) para todo mundo recuar à “posição padrão”, que é como Fahmy chama.
“É como se houvesse uma decisão coletiva na praça, sem ordens vindas de cima, para nos comportarmos da maneira oposta à que o regime tinha sido conosco”, diz D.
Em 2006, houve demonstrações massivas de solidariedade ao Líbano durante o ataque de Israel. E dois anos mais tarde, em solidariedade com Gaza. Essas manifestações criticavam diretamente a política externa de Mubarak.
D., uma artista de 49 anos, diz que é uma das pessoas “que sempre se manifestou ao longo dos últimos 30 anos, mas sentia uma frustração constante”. As manifestações “eram conduzidas como um ritual: a praça escolhida, a polícia em volta, um punhado de manifestantes marchando em direção à polícia e sendo presas. Não havia tentativa de mudar o estilo, nenhuma imaginação”.
A primeira vez que ela notou uma mudança foi em 2003, quando os manifestantes conseguiram confundir a polícia. Eles anunciaram que estariam se encontrando na mesquista de Al-Azhar, mas estavam simultaneamente em várias mesquitas. A criatividade que começou a se desenvolver na última década amadureceu e virou as manifestações na Praça Tahrir.
Valentia crescente
O evento determinante mais recente ocorreu em 6 de junho de 2010. Um jovem chamado Khaled Said estava sentado num cybercafé e dois policiais entraram e lhe pediram dinheiro. Ele disse que não tinha. Eles o espancaram até a morte.
“Assassinatos similares aconteceram antes”, explica D. “Não está claro porque esse caso particular mobilizou tanta raiva. Não foi o espancamento em si, mas o fato de que a polícia poderia aparecer e assalta-lo, dizendo que você era culpado de algo e não serem punidos por isso. Um grupo no Facebook foi criado com o nome ‘Somos todos Khaled Said’. Agora há 800 000 membros neste grupo. Mais tarde, as pessoas tomaram coragem de irem para as margens do Nilo e para a beira-mar, em sua memória. A instrução era vestir preto e permanecer em silêncio. Não era para ser uma demonstração e portanto não seria dispersa. Não era para ficarmos num único lugar, mas para nos espalharmos e ganharmos visibilidade”.
As pessoas compareceram, entre elas D. e suas amigas. Não havia muitas delas, mas causaram impacto. Mais tarde, protestos similares ocorreram.
Diz-se que a Revolução da Praça Tahrir foi fomentada pela classe média e pelos trabalhadores em situação privilegiada. Mas muitos dos ativistas atribuem sua experiência e coragem em parte às greves dos trabalhadores, que se espalharam em 1998.
“O projeto de reestruturação econômica neoliberal [no Egito] está sendo levado a cabo desde 1991. O crescimento da economia tem sido impressionante... A classe média alta e as elites prosperaram. Mas houve muito pouca distribuição de renda”, escreveu Joel Beinin, historiador da Universidade de Stanford, em 31, no Foreign Policy . “De acordo com o Banco Mundial, mais de 40% dos egípcios vivem próximos à linha de pobreza. O preço dos alimentos disparou. Consequentemente, os salários da maior parte dos trabalhadores é insuficiente para sustentar suas famílias”.
Os cortes no orçamento dos serviços públicos destruíram a rede de proteção social criada pelo regime populista-autoritário de Nasser. “O que restou foi uma cleptocracia autoritária”, escreveu Beinin.
'Conjecturas reacionárias’
A onda de greves que atingiram o pico em 2004, se seguiram à instalação do “governo do homem de negócios”, naquele julho. “Mais de 2 milhões de trabalhadores participaram e mais de 3 000 ações coletivas nesse período”, de acordo com Beinin.
O governo atendeu a uma parte substancial das exigências, esperando assim evitar que questões econômicas se tornassem luta política.
Um resultado desses acontecimentos foi a formação de duas centrais sindicais independentes, dos trabalhadores da construção civil, em 2008 e dos técnicos em saúde, em dezembro de 2010. O governo também foi forçado a quadruplicar o salário mínimo mensal para 400 libras egípcias.
Em 30 de janeiro, em plena revolução na Praça Tahrir, as duas centrais independentes e representativas de algo como quase uma dúzia de cidades industriais declarou sua intenção de estabelecer uma federação geral do trabalho, separada da atual federação do governo. De acordo com a lei egípcia, o estabelecimento de uma central sindical independente, baseada num movimento popular (e não numa diretiva governamental) é ilegal, observou Beinin.
“Os intelectuais egípcios são propensos a conjeturas reacionárias”, afirma o prof. Fahmy. “Eles confirmam o comentário do geógrafo Gamal Hamdan a respeito da suposição de que os egípcios são dóceis. Mesmo os esquerdistas questionam por que os egípcios não se revoltam. Eu respondo dizendo que houve muitos levantes nos últimos 200 anos, mas os livros de história não os mencionam, ostensivamente porque fracassaram, mas na verdade porque voltavam-se contra tiranos locais, não opressores externos”.
De fato, em 1821 houve uma revolta de grande escala no Alto Egito, contra o alistamento obrigatório, introduzido pelo dirigente político da época, Muhammad Ali, e contra a taxação e o governo locais. Aproximadamente 20 000 pessoas tomaram parte na revolta, num período em que a população do Egito era de 2,5 milhões. Quatro mil pessoas foram mortas na supressão dessa revolta.
Fahmy cita uma longa lista de levantes similares ao longo do século XIX. Ele pesquisou o exército egípcio nessa época e atualmente está estudando a história da tortura no seu país. Essa é a sua maneira de mostrar que o estado não apenas controla os cidadãos, mas também invade seus corpos. Nos arquivos da polícia ele encontrou uma série valiosa de testemunhos assombrosos das famílias que pediam que a morte dos seus entes fossem investigadas e os torturadores, punidos.
“Famílias da zona rural, iletrados e pobres insistiam para que as autópsias fossem feitas, a fim de que se provasse que a morte não tinha sido por causas naturais, mesmo sendo a autópsia contrária aos seus costumes religiosos e tradicionais”, disse.
Em 1857, um proprietário de terras próximo à família que comandava o país sentenciou um escravo negro a 1500 chibatadas por ter ido ao Cairo sem permissão. Os companheiros desse escravo protocolaram uma reclamação contra esse proprietário, que foi expulso do país como punição. Em 2006, 150 anos depois, um menino de 8 anos de uma pequena vila no Delta furtou uma caixa de fósforos de um mercadinho. Preso por roubo, ele foi espancado numa delegacia de polícia e depois caiu numa rua do Cairo. Por muita sorte, um motorista da vila encontrou o menino e o levou para a sua mãe. Os médicos no hospital disseram que não poderiam salvá-lo, mas filmar suas últimas horas. A mãe da criança, uma campesina analfabeta, pediu que o corpo de seu filho fosse exumado para uma autópsia. Ela enviou petições repetidas vezes a várias autoridades - a última ao próprio presidente Mubarak. Ninguém prestou atenção.
“No século XIX esse tipo de pedido era atendido; havia um sistema judicial receptivo”, diz Fahmy, com raiva. “Esse é o legado de Mubarak: o que ele conseguiu fazer foi minar as instituições do estado – inclusive o sistema judicial – e a moralidade”.
Fahmy diz que é por isso que o caso de Khaled Said é tão importante para entender o levante. O estado diz que Said foi morto por causa de drogas. A família pediu uma autópsia. “Não é só o fato de que ele foi espancado até a morte, é uma questão de a quem pertence o corpo”, diz Fahmy. “O estado diz ter propriedade, mas o povo diz ‘é o nosso corpo’”. Centenas de milhares de jovens egípcios identificam-se com esse caso, porque eles sentiram na pele essa realidade.
Os dois policiais suspeitos de assassinarem Said foram presos, mas escaparam da cela durante as manifestações. Anos de violência policial engendraram um poderoso ódio pelas forças de segurança. Por isso que a contenção demonstrada pelos manifestantes frente à polícia nas últimas semanas é duplamente interessante. Fahmy testemunhou dois exemplos nos quais policiais que atravessavam uma manifestação foram quase linchados. Em ambos os casos foi suficiente alguém dizer “silmiye” (quer dizer, não pela violência, por meios pacíficos) para todo mundo recuar à “posição padrão”, que é como Fahmy chama.
“É como se houvesse uma decisão coletiva na praça, sem ordens vindas de cima, para nos comportarmos da maneira oposta à que o regime tinha sido conosco”, diz D.
Nenhum comentário:
Postar um comentário